Dionísia Bento
A um Anónimo
Meu grande, grande amor
Decidi hoje que não quero, nunca mais, que tudo aquilo que representas e representaste para o mundo continue anónimo.
Decidi ainda que não te vou deixar partir sem que se saiba que és uma Diva, e que mesmo com tudo o que te foi negado conseguiste, involuntariamente, construir a tua celebridade, feita de memórias quentes no coração de homens e mulheres que contigo se cruzaram.
A tua voz única, sofrida, bela, poderosa, conjugada com os teus olhos de açúcar, verdes, do verde marinho, viajou da tua pequena vila até muitos sítios.
Vou no táxi, entediada no inferno de trânsito desta minha encantada Lisboa, reconheço aquele sotaque cantante e doce, questiono a origem; “sabe, é engraçado, mas a minha mãe é sua conterrânea” – “atão miga, diga lá quem é que é a sua mãezinha a ver se a conheço” – “é a Dionísia” (digo assim, A Dionísia, com o indisfarçável orgulho que a experiente certeza de que será imediatamente reconhecida me dá) – “ a Dionísia que cantava o fado???” – “sim, essa mesmo…” (quero-lhe pedir que me fale dela, naquele glorioso passado, mas ele não me dá tempo) – “belos tempos, da nossa juventude, que alegria!, a sua mãezinha era uma linda mulher, sabe?, e depois a gente vinha subindo aqueles caminhos da estação até à vila e quando ela dava aqueles espectáculos na praça principal, a voz dela ecoava por aqueles cabeços e a gente chorava, sem saber como nem porquê, e era como se Deus falasse com a gente…” (vira rapidamente a cabeça para trás, para me olhar bem) – “ai a vida, o mundo é tão pequeno!...”
Foi uma breve passagem das muitas idênticas que vivi na tua amada terra, algumas mais em Lisboa, em Portalegre e outras paragens, por ali.
Contaram-me também que depois veio o reconhecimento internacional na forma de um contrato, que nunca foi assinado – os brandos costumes da “casa” não permitiam tal vida a uma mulher, ainda menos a uma menina de 18 anos…
E ainda que nunca ganhaste nada com isso, pois tudo o que ganhavas com os espectáculos entregavas - disseram-me mesmo que os Bombeiros da tua terra, entre outros, te deviam bastante. Tal e qual, assim. Seria já uma bela história de vida, para contares aos teus netos e bisnetos, mas não, não ficou por aqui.
Deste tudo, tanto, sempre embrulhado em amor, a tudo e todos que encontraste. Esbanjaste o teu sorriso lindo por essa vida. Na Guiné eras a “siô boa”, sempre generosa e criativa na forma de te dares com e aos outros.
Tudo aprendeste sozinha e sempre foste (eras, até há bem pouco), uma mulher informada, dinâmica e um ser extremamente social.
Davas-me cabo da cabeça com a tua inesgotável fonte de opiniões que, agora, eu tanto queria conhecer, mas... não temos tido oportunidade, certo?
Sempre achei que, a todos os Anjos, devia Deus ter dado as asas – em vez de serem privilégio somente dos aprovados por entidades falíveis. Mas não faz mal, Ele e o teu mundo conhecem-te e sabem exactamente o que conseguiste : voar a Vida.
Por tudo o que viveste, sofreste, amaste, engoliste em seco, abdicaste, aprendeste e ajudaste, minha Princesa de branco na alma, não existe, neste mundo de oferendas vãs, algo suficientemente grandioso para te compensar.
Por isso, só posso o que o coração me pede : fazer com que o mundo, embora apenas este pequeno fio da Rede, te conheça e testemunhe pelo teu exemplo que a Vida só vale a pena quando se faz a diferença, quando se aquece pelo menos uma alma das muitas que cruzamos no nosso caminhar.
E tu, minha Querida, acariciaste e aconchegaste a Vida de todos, porque cedo percebeste que o mundo não é maniqueísta, monocromático, não foi Criado para julgar e menos ainda para condenar. O mundo tem dias, só isso.
Que posso eu dizer-te mais, meu Amor, que tu não saibas já ?...
Como refere a tua querida Natacha, que roubou ao poeta o seu modo de vida, "(...) Porque a vida só se dá p'ra quem se deu/ P'ra quem amou, p'ra quem chorou, p'ra quem sofreu", a grande verdade de tudo isto é que, para ti, a coisa DEU-SE.
Até já, MÃE.
Ana Vassalo
16-10-2008 - 11:33H
Posted 16-10-2008
Origem das Imagens: fotos pessoais.