Hoje não tenho nada de meu para dizer,
e queria, precisava de ter...
O alívio da palavra que larga o cérebro em velocidade e não se detém porque nada a pode parar. Sem o lápis azul da consciência ou dos brandos costumes, do cinzentismo estéril da discrição. Queria hoje o grito puro, indiferente a leis do ruído, rasgando do mundo todas as recostadas conclusões.
Gosto de janelas, a palavra que abre.
Na escuridão, solta-nos o mundo; no diamante o brilho; no olhar
grava-nos de alma. Janelas amplas, escancaradas de vida, seria tudo o
que preciso neste meu caminho que enclausurei há tantas eras num
lugar longe de mim, com acesso que recuso. Não sei como abri-las...
Houve um tempo em que era tudo o que sabia, ser apenas eu sem
reserva, solta por aí sem culpas, apenas vivendo o que queria ser,
procurando o gosto a gosto, sem olhar a tendências ou padrões.
Não tenho nada para dizer neste canto
frio e escuro em que me guardei, alimentando-me apenas de vida
passada, como quem subsiste de cara para a parede. É escolha, mas
não sei porque é. É o que quero, talvez por não querer mais nada.
Olho cada rosto à minha frente e, quase sempre, vejo apenas o
retrato de alguma coisa que existe e se move sem convicção, sem
perguntar porquê, sem o sentir, sequer, dessa curiosidade de origens
e metas. Com quem não resta diálogo, química ou sintonia.
E no entanto, gostava de ser eu também
esse sentir coisa nenhuma. Por mais contradições que possa carregar
nesta espécie de existência que me acompanha, sei que é por sentir
demasiado tudo, um tudo que me aniquila, que não quero conhecer
mais, nem uma gota mais de vida que parece emprestada a juros de
agiotagem.
Não tenho nada para dizer, a não ser
estas grutas que desenho no mar, dentro da minha cabeça, belas e
imponentes, como útero materno, como vida, que me acolhem depois em
cada buraco mal iluminado onde me aconchego e cuja réstia de luz me
é indiferente. É como que recolher ao quarto, entrar na cama e
tapar cada milímetro de pele com os cobertores da protecção, mas
sem o fazer, continuando por aí como que viva, apenas pairando sobre
um mundo em que não quero aterrar para não ter que o olhar em
versão de rascunho, eternamente por acabar.
Talvez por isso gostasse tanto de
Masina e a sua Julieta dos Espíritos, não sei: a difusão da cor,
que é própria dos sonhos, propicia imagens belíssimas de uma certa
realidade, que nos atinge velada, apenas, não absoluta. Nada se
revela no absoluto a não ser a imagem deformada do que foi mal
visto, da superfície que é opaca mas pode encerrar mundos de luz.
E apesar de tudo, gosto de navegar a
realidade à bolina - ou não fosse eu portuguesa, herdeira
consciente dos inventores da técnica, esta como tantas outras mais -
de contrariar os ventos e velejar feroz e loucamente contra a maré,
como quem conquista o universo, um lugar próprio e exclusivo onde
todos podem entrar e sentar-se, trocar um copo e uma ideia, mas onde
ninguém pode alterar a lei: a da inteira liberdade para escolher ser
livre.
Será aqui, talvez, que encontro
explicação para a marcante importância que teve para mim, onde
outros viam uma mera visão economicista, a Utopia de Morus * ao
mostrar-me que nem todas as grandes visões são compreendidas pela
humanidade, que se cansa a meio caminho de entender o que lê mas não
se priva de tirar conclusões do todo, necessariamente erradas mas
legitimadas pela maioria convergente na preguiça. Qualquer projecto
de sistema que contemple todos os mecanismos possíveis para obstar à
injustiça em qualquer das suas máscaras, embora devidamente
caracterizados e de visível funcionalidade, está irremediavelmente
condenado à categorização, numa sistemática de folgas e copos que
apenas concebe o mundo como sempre o viu e ainda que o que viu se
reduza ao seu tempo de vida, mais uma ou duas gerações colaterais,
como quem diz ascendentes e descendentes imediatos. E é neste
contexto que toda e qualquer ideia que prefigure a imparcialidade no
exercício da justiça, porque aquela lhe é e foi sempre inerente
antes da desvirtuação, ganha inapelavelmente - perdendo - o nome de
utopia.
Dizia-me o meu pai, num dia de há
muito tempo, eu adolescente ainda e sedenta de uma tal de justiça para
o mundo que eu via a partir-se em fragmentos pequeninos e
irreconstituíveis, que não existia na prática essa coisa
instituída da maior ou menor justiça, i.e. não é possível ser-se
mais justo ou menos, porque a gradação é incompatível com a
própria essência do conceito: ou se é justo, ou se é injusto,
restando somente as variações “ajustantes” na aplicação, que
libertam, mais ou menos – aqui sim - a consciência de quem a
aplica, à dita justiça. Dou-lhe hoje a razão que na altura não
reconheci.
E então, é como dizia antes, não
tenho mais nada de meu para dizer, nestes dias de progressivas,
galopantes más surpresas sobre a natureza humana, seja lá isso o
que for - e à parte as aportações específicas do sagrado para o
termo “natureza” que não vêm ao caso - num mundo onde se
arrastam cães pela cidade amarrados a carros sem que se chegue a
entender de razões por mais obscuras que viessem a revelar-se,
porque esse mundo dispõe de uma tal justiça que é selectiva, que
classifica os seres e os divide, sendo que uns são validados e
outros simplesmente não; onde se deitam recém-nascidos no lixo,
certamente por conveniência integral de prioridades já que a
cobardia menor de os largar à porta de uma qualquer “misericórdia”,
das muitas que vão proliferando e talvez não por acaso, seria
certamente tempo perdido e vital para outras actividades de maior
interesse porque mais lucrativas, arrisco; um mundo pragmático a
todo o custo, onde um nicho de generosidade em cada coração não
garante lugar nos mercados do sucesso, pelo que será sempre um lugar
de meia-dúzia de romeiros, outsiders, alienados, e tantas outras
classificações de alívio de consciência aplicadas aos que
utopicamente – lá está – vão resistindo à globalização da
“bolsa de valores” nos lugares que são ou deviam ser de sentir.
Tenho pena, enfim, de, nesta altura da
vida em que sinto que a gastei demais e extemporaneamente pela sede
de chegar às metas, como o menino índio com o seu novelo, não me
restar nada para dizer a mim própria, a única entidade, no fundo,
para quem sempre escrevi na ingénua esperança de que,
entendendo-me, poderia melhor servir o Outro. Mentira. Os outros são
meros transeuntes de nós, passam-nos rasando mas sem tocar. Apenas
olham, não nos vêem. É inexistente a ideia de comunhão ou sequer
de comunidade no dia que hoje escurece. Somos utilitários do Outro,
descartáveis e nem por sombras recicláveis. Sasonais, é o termo
que me ocorre, de repente.
Por isso parto sempre. Antes do fim de
todas as coisas. Porque as aprendi, às muitas coisas de Não Ser,
pela vida fora. Que rejeitei, ainda que teimosamente as tenha
invariavelmente reduzido a um mundo de culpa: a minha. Achando que,
ao olhar para dentro e tentando arrancar tudo o que não se me
prefigurava como certo, nasceria eu melhor a cada dia, para um amanhã
de partilha mais perfeita com o Outro. Tenho esta cegueira congénita,
esta incapacidade de reconhecer, para mim, a culpa no outro, embora
conscientemente consiga enxergá-la. É depois aquela zona mais
escura e imprevisível, autónoma e impositória quem inverte os
papéis e me reduz a culpada dos males do mundo. Pelo que faço e
também pelo que deixo de fazer. Por dar e depois por não dar. Por
estar, para não ser, e a seguir duvidar se devia ser mais, quando o
que sou apenas serve o meu isolamento.
Se eu tivesse algo de meu para dizer, o
que não é o caso hoje, diria que todo o amor que tenho dentro de
mim é tanto e tão intenso que me fere e me afasta do mundo, a
tentar curar as feridas num abraço desesperado ao esquecimento. Tal
como se me apresenta, esse mundo de hoje, a cada palmo, a cada gesto,
a cada notícia, resulta numa impossibilidade para mim, Não consigo
aumentar mais o coração para nele receber e processar tudo o que me
faz mal, um mal tão agudo que quase o sinto palpável. Pelo
contrário, sinto que vai ficando pequeno, pequenino, queimado de
tanto embate. O mundo é feio, muito feio, tal como o vejo hoje e não
serão os optimismos de bolso ou as filosofias de sorriso as
ferramentas com a necessária objectividade para uma visão
diferente. Mas rende, eu sei. Nada como apelar à futilidade
residente em cada um de nós, em maior ou menor grau, com um bem
achado pensamento de paz, alegria e suposta lucidez, de uma qualquer
sabedoria incomprovada, quanto à verdadeira essência da vida (?)
para logo se arrebanhar uma multidão de fãs. Pena que não seja
mesmo eficaz, esse “ser” porque queremos muito que seja, e talvez
não por acaso ou ver-nos-íamos confrontados com a circunstância de
não sobrar razão para continuarmos à procura de um qualquer
sentido da vida que nos justifique necessários, mas que alguns,
certamente mais iluminados, parecem já ter descodificado.
E se digo que nada de meu tenho para
dizer, recordo, é porque do cérebro até aos dedos se perde o que
de genuíno sentimos e queríamos transmitir, deixando apenas sombras
no que conseguimos captar.
Hoje, não tenho, pois, mesmo nada para
dizer ao mundo. Mas se tivesse, lembrava que tenho saudades de um
tempo meu em que dizer era viver o dito, cantá-lo, arrancá-lo a toda a
censura, metralhá-lo, fazê-lo reviver numa esperança inabalável.
De ser gente dentro de mim. E de amar sem reserva o Outro, em todas
as situações justificado e compreendido. Ou de amar sim, ainda sem
reserva, sempre que o coração fugia e se aninhava num outro
qualquer, que nos passou e não se limitou a rasar, mas fez, sim,
questão de tocar o que encontrou. E de encantar. Tão raro na minha
vida, por isso tão precioso. Um tempo fantástico de se ser, em que
acreditamos em metades platónicas e vivemos o amor muito além do
limite de compêndios aprovados e de sensatez a metro.
Uns dias mágicos onde é tão natural
dizer “tenho tantas saudades tuas, desse nós que havemos de ser”.
Saudade de amanhãs que acrescentam porque a mudança é uma
possibilidade num universo de acreditar. Onde a criança que somos
não capitula e nos dá a mão até ao futuro que somos ainda capazes de
inventar, tentados pela inocência. Hoje.
Saudade do sonho que ainda não sabe
que é sonho. E ainda há pouco, quem sabe se ontem, morava aqui,
vivendo em mim...
Ana Vassalo
22-Fev-2013
* Tomás Morus, o nome latino de Thomas
MORE, adoptado, como era prática à época, em homenagem aos
Clássicos, e visível ainda em algumas edições mais antigas da
obra.
(Imagem: foto de Jack Cheng, in “The True Weight of Things”).
A unica forma que encontrei para comentar o texto.
ResponderEliminar"Espreitam palavras por janelas
frases que me chamam
e amedrontam
Preciso do sol das palavras
a mexerem-se nos lábios
sem ruido
levitando pela brecha
da sombra."
JFV
Ainda estou sem saber se entrei ou saí pela janela à procura de palavras para te dizer o que senti. e é muito!
Beijinho, amiga!
Estás tu e estou eu, amigo, que neste ontem que felizmente já passou a coisa estava brava. Agora é já o futuro de ontem que chega com algum sol da noite. Janelas há. Agora é esperar o amanhecer, com um pouco menos de frio, e escancará-las! Quem sabe, o dia não se ilumina!
ResponderEliminarAdorei o teu comentário poetado. ;)
Beijinho, dear, obrigada.
TODO O TEXTO ME TOCOU PROFUNDAMENTE_MUITO PROFUNDAMENTE_!
ResponderEliminarPorem, destaco esta PARTE porque nao so' me TOCOU como me PREOCUPOU!
"Se eu tivesse algo de meu para dizer, o que não é o caso hoje, diria que todo o amor que tenho dentro de mim é tanto e tão intenso que me fere e me afasta do mundo, a tentar curar as feridas num abraço desesperado ao esquecimento. Tal como se me apresenta, esse mundo de hoje, a cada palmo, a cada gesto, a cada notícia, resulta numa impossibilidade para mim, Não consigo aumentar mais o coração para nele receber e processar tudo o que me faz mal, um mal tão agudo que quase o sinto palpável. Pelo contrário, sinto que vai ficando pequeno, pequenino, queimado de tanto embate. O mundo é feio, muito feio, tal como o vejo hoje e não serão os optimismos de bolso ou as filosofias de sorriso as ferramentas com a necessária objectividade para uma visão diferente. Mas rende, eu sei. Nada como apelar à futilidade residente em cada um de nós, em maior ou menor grau, com um bem achado pensamento de paz, alegria e suposta lucidez, de uma qualquer sabedoria incomprovada, quanto à verdadeira essência da vida (?) para logo se arrebanhar uma multidão de fãs. Pena que não seja mesmo eficaz, esse “ser” porque queremos muito que seja, e talvez não por acaso ou ver-nos-íamos confrontados com a circunstância de não sobrar razão para continuarmos à procura de um qualquer sentido da vida que nos justifique necessários, mas que alguns, certamente mais iluminados, parecem já ter descodificado.
E se digo que nada de meu tenho para dizer, recordo, é porque do cérebro até aos dedos se perde o que de genuíno sentimos e queríamos transmitir, deixando apenas sombras no que conseguimos captar.
Hoje, não tenho, pois, mesmo nada para dizer ao mundo. Mas se tivesse, lembrava que tenho saudades de um tempo meu em que dizer era viver o dito, cantá-lo, arrancá-lo a toda a censura, metralhá-lo, fazê-lo reviver numa esperança inabalável. De ser gente dentro de mim. E de amar sem reserva o Outro, em todas as situações justificado e compreendido. Ou de amar sim, ainda sem reserva, sempre que o coração fugia e se aninhava num outro qualquer, que nos passou e não se limitou a rasar, mas fez, sim, questão de tocar o que encontrou. E de encantar. Tão raro na minha vida, por isso tão precioso. Um tempo fantástico de se ser, em que acreditamos em metades platónicas e vivemos o amor muito além do limite de compêndios aprovados e de sensatez a metro.
Uns dias mágicos onde é tão natural dizer “tenho tantas saudades tuas, desse nós que havemos de ser”. Saudade de amanhãs que acrescentam porque a mudança é uma possibilidade num universo de acreditar. Onde a criança que somos não capitula e nos dá a mão até ao futuro que somos ainda capazes de inventar, tentados pela inocência. Hoje.
Saudade do sonho que ainda não sabe que é sonho. E ainda há pouco, quem sabe se ontem, morava aqui, vivendo em mim..."
ABRACO-TE POR DENTRO DO MEU PEITO E PENSAMENTO!
Mana grande.
Beijo grande, minha querida, muito obrigada. Já passou, no worries. De vez em quando escureço, deve ser de tanta chuva... ;)
ResponderEliminarSORRINDO!!!!!!
ResponderEliminarEu, vejo-TE sempre luminosa e iluminada!
ABRACINHO!!!!!! <3 <3