OUTSIDERS COM ESPELHOS
ou
“MALTESES, BURGUESES E ÀS VEZES”,
como diria ARTUR SEMEDO.
É que era assim que me entretinha na
Faculdade, em momentos de tédio aterrorizante – para dizer o
mínimo – quando nada do que ali se passava me conseguia manter um
só pézinho no mundo concreto, seja lá isso o que for.
Sempre tive as minhas fugas, sob a
forma de rabiscos, letra desenhada, slogans dos anarcas, flores
inconcebíveis à vista humana, perfis de rostos, etc, que assim
nasciam para a luz do dia em qualquer espaço que aceitasse escrita –
mesa, secretária, carteira ou estirador incluídos, a par com
livros, cadernos, bata (só nas baínhas, vá) e mãos.
É do domínio público, para quem me
conhece, que o tédio da rotina me mata, bocadinho por bocadinho, com requintes
de malvadez, ao mesmo tempo que me transforma em feroz criatura cuja
proximidade deve, preventivamente, evitar-se a qualquer preço.
E lá, na Faculdade, os momentos afins
abundavam e multiplicavam-se assustadoramente: os elitismos, que têm
o condão de me cansar até à exaustão, as aulas de encher balões,
os senhores catedráticos que estavam ali com o propósito único de
nos reduzir à mais fraccionada insignifância, algo que faziam com
arte, disfarçando um certo desprezo descontraído que se camuflava
de paternalismo e, não poucas vezes, a mensagem insubtilmente
transmitida de que não passávamos do tal meio para os fins certos,
nós, o paycheque, que é como quem diz o instrumento de
subsistência. Claramente, não me refiro à totalidade, mas à
grande maioria.
Não que eu possa queixar-me muito, já
que todas estas feras, revolucionárias e heróicas, algumas com anos
de cativeiro e intelectualidade a toda a prova, sempre me trataram
muito bem poupando-me aos seus arranques de mau génio
consubstanciado na lista das notas que, numa primeira abordagem,
cheguei a confundir com a lista de faltas – coisa intrigante, já
que o sistema de controlo de presenças não era, supostamente,
aplicável a trabalhadores-estudantes, embora os nossos “amigos”
se estivessem rigorosamente nas tintas para a legislação.
Realmente, era uma listinha onde pululavam os algarismos de 0 a 6,
especialmente na cadeira de Pré-História, fosse qual fosse o
docente, mas não só.
Em todo o curso, de 22 cadeiras feitas,
e algumas com docência dupla, tenho de confessar que admirei
genuinamente, pelo seu Saber indiscutível, uns 4 professores, todos
eles “deslocados” da respeitável normalidade: um ex-frade, em
História da Cultura e Mentalidades (Medieval), Professor Armando
Martins; um matemático e historiador, em Política, Sociedade e
Economia (Portugal, Moderna – XVI a XVIII), Professor António Marques
d’Almeida; um informático em Contemporânea de Portugal – e
grande especialista da História da 2ª Guerra Mundial – Professor
José Tello; e, por fim, para mim o mais brilhante, um cérebro
contra-corrente, que citava passagens em latim ou grandes excertos de
obras enquanto olhava para o tecto - contrariamente à prática
instituída, pelos seus colegas de profissão, de dar aulas debitando
fichas de leitura – e que acabou por ter de ir fazer o doutoramento
(era muito jovem, ainda) ao Departamento de Literatura, já que as
suas ideias marginais não haviam colhido vestígio de simpatia no
empinado e conservador Departamento de História.
Era o Dr. Luís Filipe Barreto e a
cadeira era a de História da Cultura Moderna em Portugal. Era
peculiar e incómodo. Em choque com a corrente, aceitava apenas
testes “pragmáticos”, i.e. completamente despojados de “palha”
e até um esquema ou gráfico lhe servia, desde que contivessem bem
explanadas e completas todas as respostas correctas. “Magnânimo e
pouco exigente” como era – e no entanto eram as suas aulas que me
faziam ir à Faculdade – as notas com que presenteava 80% do
público assistente dançavam entre o 2 e o 7. Uma festa rija,
diga-se já, que enchia a Reitoria, sem pré-aviso, de uma multidão
de desistentes até ao sagrado mês de Abril, o prazo final para a
possível debandada.
Segue-se que, pareça ou não, sempre
fui mulher de grande pragmatismo nas circunstâncias que o exijam,
como a escola ou o trabalho, e logo, tratei de entender o contexto e adaptar-me àquelas aulas diferentes de tudo a que já tinha assistido, nada fáceis, e por isso mesmo extremamente motivadoras para mim. À parte os benefícios que me
concedia de reservar a última meia-hora de aula para debate de
questões “filosóficas” - as minhas omnipresentes incertezas e
que enchiam de apontamentos os cadernos dos meus colegas, coisa assaz
divertida já que estávamos apenas a conversar – acabei por me
surpreender quando por fim soube que me tinha agraciado com uma das
suas mais altas notas finais.
E eu, pela primeira vez, sentia-me bem
naquela casa, por constatar que para suceder não era inevitável pertencer ao rebanho de
alinhados que debitavam “o facto em História” como coisa certa e
indiscutível, numa verborreia apática, seguidista e interminável. A
verdade é que não foi esta a minha nota final mais alta: para além
de várias de igual valor, outras duas finais e várias intercalares
distanciaram-se em vantagem desta, mas nenhuma me deu o imenso gozo
que esta me proporcionou.
Foi este, dos poucos que admirei
genuinamente, o professor que me fez sentir mais gente, mais
especial, pelo visível respeito com que me tratava por, como me explicou, ser
trabalhadora-estudante, o que me levava a faltar à maioria das aulas
– de todas as cadeiras - sem que isso, contudo, parecesse prejudicar-me a
prestação e sem nunca ter cedido à "salvação" da melhoria de
nota.
Claro está que eu, tal como ele, era
uma espécie de ET infiltrada por terras de iluminados perfiladíssimos
e jamais me integrei no espírito dominante de caça à nota, com os agregados e implícitos esquemas de actuação, o que
não obstou a que fosse, sim, integrada por toda a espécie de
facções e contra-facções, que me achavam alguma graça e me
baptizaram a partir do 1º ano de “baldista-mor do reino” (de vez
em quando, eu aparecia por lá...). Graça essa que radicava na mira
exclusiva aos meus apontamentos, esquemáticos, impossíveis, que eu
própria mal conseguia ler depois, mas que, ainda assim, se tinham
tornado populares porque, afinal, apanhavam tudo o que ficara dito e
bem feitas as contas, com jeitinho, lá se conseguia descodificá-los. Interessa
esclarecer que naquela casa ninguém dava, sequer emprestava nada a
ninguém, porque a concorrência era feroz e lá está: “sabes, não
ias perceber a minha letra” - deixando-nos, assim, completamente à nora a 2, 3 dias de testes globais.
Já eu, que me estava regiamente nas
tintas para a competição – a minha vida não era ali – tinha os
meus cadernos a circular por resmas de penduras e via-me depois
“grega” para os recuperar. Mas tive colegas bem interessantes,
enquanto que outros, enfim, nem é bom lembrar, valham-nos todos os padroeiros da guerra aos
gravatismos associados...
Moita Flores, por exemplo, foi meu
colega até ao 3º ano, tal como João Abel (da RTP) até ao 2º. Do
primeiro tenho as mais divertidas memórias e provas dadas de companheirismo, de alguém que rejubilou
com a derrota por mim infligida ao 'astro' João Abel, única e
memorável, deixando-o para trás num teste de História de Portugal
Medieval (política, sociedade e economia) o que levou uma turma
inteira ao delírio do aplauso e ao cumprimento personalizado, a que
só faltou... João Abel, sim.
O mais significativo cumprimento veio, pois, de Moita Flores e... não se explica, mas há coisas que nos marcam. Na altura ninguém o conhecia, era apenas um agente, ou seja lá qual for o nome de guerra que se dá à coisa, da Polícia Judiciária, mas escrevia divinamente poesia, tendo chegado a ler um dos seus poemas numa das aulas que tínhamos em comum.
O mais significativo cumprimento veio, pois, de Moita Flores e... não se explica, mas há coisas que nos marcam. Na altura ninguém o conhecia, era apenas um agente, ou seja lá qual for o nome de guerra que se dá à coisa, da Polícia Judiciária, mas escrevia divinamente poesia, tendo chegado a ler um dos seus poemas numa das aulas que tínhamos em comum.
Era um tipo cool e éramos nós que, a
pedido, lhe assinávamos a folha de presenças sempre que ele se
baldava – eram muitas as vezes, logo, representava a minha
concorrência. Observei-o anos a fio e constatava com agrado que se
mantinha em terra, bem assente. Até que a política lhe saíu ao
caminho e... voilà: estragou-se definitivamente. Ponto final.
Já João Abel será, muito
provavelmente, o tipo mais entediante, untuoso e reaccionário que
conheci em dias de vida... Mas tanto, tanto, que nem vale a pena
explicar – ia adormecer a meio da tarefa, seguramente. E apenas para que
não pareça gratuita a afirmação que acabei de produzir com toda a
convicção, deixo um lamiré: apresentava-se aos testes com consulta
apetrechado de 4 sacos enormes de hipermercado (o bom gosto, enfim)
carregados, até ao entorno, de enciclopédias e outros calhamaços
sem graça, ele rejubilante de entusiasmo por um exercício com duração
agendada de 4 horas...
Enquanto eu, à porta, em modo de pânico disfarçado e
seriamente desconfiada a olhar o anfiteatro, hiperventilava de
claustrofobia, ao mesmo tempo que engendrava as mil e uma maneiras de
conseguir pirar-me para vir cá fora fumar, lá pelas 2 horas
cumpridas – coisa q se revelou impossível e q resolvi de forma
lógica e elementar, reduzindo a minha prestação a 2 horas (o meu máximo
permitido em clausura) saísse lá o que me saísse para aquela enorme e indigesta quádrupla folha de teste.
Segue-se, ainda, que retirar dos sacos todos aqueles compêndios de sabedoria alugada, tomavam, a ele e a nós, uns bons 10 minutos de estrondo e confusão, apenas intercalados pelos seus magníficos apontamentos de humor e sorriso cretino a condizer, que invariavelmente nos levavam a todos, sem excepção, à lágrima de profundo desgosto.
Segue-se, ainda, que retirar dos sacos todos aqueles compêndios de sabedoria alugada, tomavam, a ele e a nós, uns bons 10 minutos de estrondo e confusão, apenas intercalados pelos seus magníficos apontamentos de humor e sorriso cretino a condizer, que invariavelmente nos levavam a todos, sem excepção, à lágrima de profundo desgosto.
Com tudo isto dito, acresce que por lá
andava também o meu parceiro de vida - por mais de 18 anos mas que, então, caminhava ainda os tais primeiros e fatídicos 7 - a quem
doravante me referirei por F., arqueólogo desde a adolescência –
há umas quantas décadas, portanto – e muito reconhecido entre a
classe docente que o encarava como alguém que apenas está a
oficializar uma situação.
Ora, nos furos das minhas aulas,
cabia-me assistir às suas intermináveis reuniões de trabalhos
académicos, outros da Associação de Arqueólogos, enfim, ossos
duros de roer para quem não se entende com burocracia em lado nenhum e muito menos a inflitrada no
conhecimento, e que terão levado a que, por exemplo, eu recusasse a
proposta para a minha adesão à referida e respeitável Associação,
já que a mesma comportaria condições especiais dado que eu não tinha
nenhuma obra publicada na área.
De chatice em chatice acumulada, que
tinha de engolir porque, lá está, amor a quanto obrigas e tal,
lembro-me de uma particular, uma tal das muitas conferências que
tive de digerir, mas esta com especialíssimos convidados de honra: a Dra. Maria
Barroso, com uma intervenção bastante interessante dada a sua
inquestionável capacidade de comunicação; e também sua Eminência... o
Bispo de Lisboa e Cardeal- Patriarca, D. António Ribeiro, ali, de
frente para mim, eu, pobre infeliz, depositada na primeira fila já
que tinha chegado atrasada, só para não variar, calhando-me em
sorte aquele lugarzinho sobrevivente, ele ali também, olhos nos olhos às vezes, seraficamente entronizado à direita da "mãe" – neste caso a
oradora – até que chega do lugarzinho ao lado, via F. - que
entretanto arranjara maneira de ir sentar-se ao pé de mim - a tal da
notícia interessante e de tamanha importância que o levara a trocar
de lugar: “não te esqueças que no final da cerimónia há que ir
cumprimentar os convidados, e já sabes qual é o protocolo com o
Cardeal...”.
Tal aviso, mesmo em cima do
acontecimento, resultava, claro está, das intermináveis discussões
sobre aspectos do protocolo que me recuso desde sempre a seguir, quer por
considerar que contêm uma essência que radica em marcada discriminação
social, quer porque se inserem em princípios/causas que repudio ou, pelo menos, com que não me identifico, pelo que este, em particular, havia já sido largamente
debatido: o beija-mão ao Bispo, melhor dizendo, o beija-anel...
Olhei para ele, rasguei o mais inocente sorriso e de olhos bem
fincados nos olhos dele, murmurei: brincalhão! ... ... ... (E ninguém "lhe"
respondeu...)
Não era ali, certamente, que a
disputa, já com uns largos anos em cima, se iria resolver, pelo que
ao deparar-me com um certo olhar gelado de quem ignora supinamente o
que acabou de ouvir, decidi que iria comportar-me até ao fim, ao
mesmo tempo que me artilhei com o mais conveniente sorriso de
ocasião, sem treino nem nada, mas inegavelmente eficaz.
Escusado será acrescentar que no final da palestra, e pelo meio
daquela coisa importante de confusão e cumprimentos, protocolo, etiquetas e chiquismos vários, nasceu a grande, magistral oportunidade
para a mais rápida e misteriosa fuga na história do Convento do
Carmo: a minha, está bom de ver.
Se a estas interessantes peripécias
acrescentarmos a evidência de ter que receber favores para entrar
para a Associação nas ditas circunstâncias especiais, e ainda por
cima vindos de alguém que eu me divertia ciclicamente a irritar – o Sr.
Presidente … Santana (levantemo-nos) – referindo-me à sua filha,
minha colega de curso e amiga, como “Manela” e sempre ignorando o
título académico atrás da coisa, circunstância que empalidecia de
morte o Sr. Presidente (levantemo-nos de novo), também ele
fortemente ligado a estas questões de protocolo (este de cariz
familiar, certamente, que não me ocorre outra explicação) e que,
irremediavelmente, me fazia brilhar de gozo o olhar sério e composto
que lhe dirigia, digamos, então, que não era a mais inteligente ou
coerente ou o diabo a sete das resoluções aceitar tão generoso
favor.
Portanto e naturalmente, lá me deu
para recusar tão prestigiante proposta, o que, expectavelmente, me
valeu o rancor vitalício de F., se a tudo isto juntarmos a imperdoável desconsideração
protocolar para com o Clero. Coisas.
Mas, dizia eu então, há uns largos
parágrafos atrás, que na contingência de ter que gramar com todas
as conveniências sociais da chatice, com vista à subida de terceiros a
poleiros compensadores, me entretinha eu a matar o
tempo, enchendo resmas de folhas, como quem diz páginas - já que só
escrevo de um dos lados, por princípio de honra inquestionável e
sob pena de confronto em duelo - com a tal da escrita em espelho que,
para além do desafio que constituía pela diferença e corte na
rotina, me vingava regiamente, se nos lembrarmos que a este tipo de
escrita se refere a tradição popular como “escrita do diabo”! A
facilidade com que o faço, desde o primeiro momento, deixa-me em
profunda meditação sobre motivos, origens, explicações,
enfim. Uma ralação indescritível, se querem saber... Adiante.
Certo é que foi ela quem me salvou de
inenarráveis momentos de tédio que nem um exército de calhamaços
chegaria para albergar. E serve ainda, porque recorrente, para me
mostrar que o cérebro descontrai e aprende o caminho novo logo que a
mente se liberta do aprendido, da orientação normativa que se tornou em prisão.
Por fim, em nota final, lembro com
carinho que foi sempre esta a escrita escolhida para deixar os
bilhetinhos mais pessoais aos amores da minha vida.
Do diabo, ao que parece, mas com
amor...
Ana Vassalo
27-Jan-2013
Ana Vassalo
27-Jan-2013
Recordar a vida académica de uma forma humorada e com uma escrita firme, inteligente e cinematográfica. Vi cenas hilariantes a passaram-me pelos olhos, vivi-as como se estivesse presente. A sátira também me contagiou; Fantástico beija-mão/anel, que não foi. Critica feroz a quem de direito, mais não merecem...
ResponderEliminarConcluindo: Texto que se lê de "uma assentada" e nos envolve não só pelas (his)estórias, também pela fluidez da palavra sem ser necessário ao excesso e aos "rodriguinhos" para que aconteça acção e haja ritmo. Fui embalado pela tua prosa e fiquei com o diabo no corpo para ler mais..."Com amor"
obrigada, lindo, que bom que te divertiste :) obrigada tbem pela tua amizade, sempre presente. beijinho grande.
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