Photo by Rafael Marchante, Reuters, Sem-abrigo de Lisboa
Há um risco preso à noite, um rasto
branco adiante que ondula, sujo de néon. Sigo só, pelas avenidas,
ruas de ofícios, travessas e becos, que me hão-de reunir aos
companheiros de tarefa, lá por bandas de Sta. Apolónia. Junto ao rio,
um barco ancora a solidão dos tardios. A estação não dorme horas
certas e corpos alinham-se no frio mais composto por um tecto,
enquanto outros se enroscam nas esquinas de papelão da noite
indiferente.
Do outro lado, a revelação de um
subterrâneo inesperado traz à vista um jovem casal. Grávido. De
muito, tanto quanto de pouco. Ela, carrega consigo uma vida que ambos
anseiam - certeza colhida nas vozes embargadas de um e outro, onde se
misturam a comoção e o abraço ao futuro – ao mesmo tempo que o
olhar resignado denuncia um outro parto, que pariu a rua como abrigo.
Ela é bonita, ele também, são doces ainda, num sorriso de vida
aprendida na "espera", essa tal que gosta de se passear num provérbio traidor.
Informam receios, também. Como quem
parece precisar apenas de agasalho para a alma, que se resguarda de
males a somar, em espreita, ali mesmo à mão de roubar o último
fôlego da esperança. E a sopa quente que lhes entrego sabe-me, a mim, a
vida sem alma, a minha, que se desfaz em perguntas sem resposta.
Despeço-me do olhar brando a espelhar o sorriso criança que ainda
sabem, enquanto no meu bolso se revolve a lágrima que prendo, com
ganas homicidas, pelo pescoço.
Continuamos a subir, à luz da
opulência de uma avenida bela e antiga, que forraram a mentiras
atraentes, querendo sugerir que ali nasce e morre toda a beleza
disponível no mundo, a consumir farta e rapidamente. E por
contraste, numa outra esquina, um outro improviso, de um velho coração
que alberga gerações de rua sem conhecer outro nome de vida. E, de
novo, os cartões do calor como cobertor - que se conhece, às vezes, e dura o tempo de uma chuva - e mais um sorriso que aprendo por entre a confusão dessas
infindáveis perplexidades do caminhar.
E enquanto os meus olhos se fixam no
amontoado de velhos mas valiosos pertences daquele homem aquietado no único rumo que conhece, a mente dispara recapitulando o dia. Recordo, de
minutos antes, um outro grupo de desabrigados, no Cais do Sodré, pouco mais que adolescentes. O diálogo, a face tardia do lamento a reconhecer horas
de abismo, que já foram de magia pelo poder acrescentado das muitas
cocaínas e afins do engano. E depois, a pausa para mais uma
nota, que registo no diário dos afectos: não há homens sem remédio,
que o bem não se define no singular; é circunstância, e depois é
recurso, que acontece ou não, numa gramática de acasos.
Existe um Tejo e uma Lisboa para cada
recanto da noite ali, que se separam por mundos: LuxFrágil no espaço
aprovado; apenas frágil no lado infortúnio. Uma estrada apenas,
calada e escura, os divide, na margem norte das águas que correm
diferenças numa indiferença sem prazo.
A Maria será mãe no corpo da noite
sem shots - o agasalho do que se lembra e se veste em esquecimento. E
nós, robots do caminho aberto em revista cega a tudo o que não
projecte um social oportuno, que se folheia numa cadeira da noite
aconchegada pelas avenidas da sorte, sonhamos partos sem dor no
regaço dos confortos invalorados, que logo depois esquecemos.
Na noite que se desenha nos pára-brisas
da ausência, justiça vale um segundo oculto na luz do rio, que pulsa
ao toque do tempo disfarçado de avançar, em corpos reféns da
dança como quem busca em paradoxo o rosto da liberdade, que a manhã seguinte
revelará não conhecer.
E a música corre um hiato, pelas calçadas vizinhas, entre excesso e defeito, zibelinas e papelão, lacuna entre o abismo e o sonho.
À distância de uma tira cor da noite, morre o lado que desce ao frio, enquanto o outro se estafa por amanhecer verdade...
E enquanto rumo até casa, desconfortada pela agressão de um outro tipo de frio, de uma estirpe que entranha e corta a fundo, cruzam-se na memória flashes sucessivos de uma noite que agora parece rir de mim. Como quem me acena manuais de vida, com instruções precisas sobre a impossibilidade técnica de se ignorar o aprendido e continuar a caminhar ambos os lados.
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(Memória do primeiro dia de um dos meus tempos de
voluntariado, este entre 2000 e 2001.)
Ana Vassalo
14-Jan-2013
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