As coisas da terra são esquisitas. São diferentes das coisas do mar.
No mar há monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres.
Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas.
in A
Menina do Mar, Sophia de Mello Breyner Andresen ]
Há
em tudo o que me conheço um universo faz de conta.
O
tempo correu bem e mal, e eu tratei-o sempre da mesma forma.
Afrontando-o. Arredando de mim um conceito que dizem concreto: esse,
o mundo.
Olho
em volta e tudo reflecte um conto. De crianças, sim, que inventam
tempo à sua medida para poderem brincar com ele.
Há
por aqui os van gogh, gauguins, cézannes, kandinskis, picassos e
mirós reproduzidos, e mais uns quantos, uns de origem, a maioria não, todos instrumentos de ilusão. São mentira,
naturalmente, bogus, como quase tudo a que me agarro. Mas há
também João e Zita, nas telas que a parede carrega para bem mais
fundo, no coração.
Enganei
a vida com arte, fosse nos perfumes que me iludiam de glamour, nos
lenços e écharpes como peças artísticas de um pintor genial e
louco, ou nas porcelanas e cristais de pintar um mundo sublime, em
pequenos enormes momentos arrancados de existências repetidas.
Viajei galáxias de mil e um dias, pelos livros. Vivi irrepetíveis
aventuras de maravilha, pela música. E amei desalmadamente. Sempre
sem condições, e o incontornável espectro do erro em presença.
Ancorei-me
no belo e asfixiei-me dele.
A
quase penúria que hoje sou vive o fôlego dos passados onde me
arrumei ao pé da beleza para não pensar o feio dos dias.
Gosto
de «coisas», continuo a gostar, para meu inferno secular. Como
gosto de pessoas, por mais que a rotina confirme o ouropel, bijuteria
das escolhas em que sou versada. Mea culpa, somente, que nada se
atrai por acaso.
Olho
o meu espaço pontilhado de belos, vulgo absolutos nadas, e penso: um
terramoto acabaria com tudo isto... e deixar-me-ia a sós comigo,
sobrevivente. Não de agora, que a revelação é antiga de décadas
mas surge renovada e omnipresente nos dias, como esse deus que
inventei só para mim e não encontro no mundo Outro.
Só
os relógios continuam coerentes. Marcam o tempo que desconheço
desde sempre, em que me perco todas as semanas, pelo menos durante
dois dias e com tendência de incremento. Mas são belos, os relógios que
escolhi, e é por isso que os quero. Validam a minha noção de
estética, por mais que seja privada e discutível. O belo
agasalha-me de mentiras procuradas, que confirmam o inevitável:
“everybody lies”...
Essa
mesma estética que me dizia os amores com rasto de cinema, em
eternidade: invencíveis, irreparáveis, maravilhosos de contradição.
Poucos, de resto, e ainda bem. Mensageiros de uma verdade que teimei em pensar diferente e leal.
Não
há na vida mais que uns momentos de abandono. E temos a verdade, a nossa,
que construimos como irrefutável e imperecível. A vida farta-se de
nós, no momento em que a despedimos. Olhe, desculpe, era só por um
bocadinho... Não. Há que entrar o reino da consequência. E depois, já tudo é silêncio e ausência
demandada. Não queremos jangadas de salvação, senão as que nos
carregam por mares de arribar a um porto que é nosso, apenas nosso,
desconhecido das rotas marítimas. A nossa verdade escusa-se ao
racional acrescentado, pensa que sabe, navega pelas estrelas.
Caminhamos
descalços por um lugar de encontro com a promessa que se faz tarde.
E que sabemos lá, perto do que somos e não validamos. «Ser» é um
lugar difícil de manter, que ansiamos ao segundo e demitimos ao minuto. Nada
nos encontra na verdade que defendemos. Porque o sucesso tem face,
vive de imagem reflectida. É espelho polido de nós como photoshop
da existência.
Mas
eu, eu não sei de aprender, de como seguir os passos da
conveniência. Arrumam, é certo. Mas será que me quero arrumada? Há
uma espécie de caos em mim que me sitia, quando tudo parecia
correcta e finalmente organizado. É que a ordem mortifica-me, na mesma
proporção em que preciso dela. Vivo intercalarmente.
Não
sei, jamais soube por onde seguir, apenas percebi os atalhos que
recusei. Sei de tudo o que não quero - porque não me reflecte.
Seguir adiante é uma outra coisa, despojada da ideia de cerco. Que
não me larga os dias. Ressaco por um mecanismo de off a pedido.
Largo as vantagens por aí e sonho-me límpida como cristais,
buscando a estrada que me reconhece e sabe aonde vou. Onde quero ir.
Mentira.
Sou um mapa confuso, de avenidas, alamedas, ruelas e becos, que se
intersectam e adiam o destino. Não sei como se gera uma construção.
Uma vida sustentável. Não a de «coisas», que bem fundo desprezo,
e não apenas por demonstrada incompetência. Uma outra vida, talvez
outro nome, onde um olhar de criança reviva sem a decepção.
Por
isso, aceito o tempo que já foi, onde me reconheço minimamente num
lugar de partir, que sei procurar e acredito, um dia, alcançar. É o
tempo combustível, que me põe em marcha. Porque, paradoxalmente, não paro nunca.
Até
lá, onde todos os pontos convergem num bom ângulo de construção, as «coisas» sossegam-me. São a minha Ordem. Numa overdose de
belo, que já me iludiu de tempo, como certo.
Hoje,
tento com empenho semeá-lo de mim: um tempo que me ensine a
posicionar o Outro, que sempre privilegio e tendo a proteger, mas agora num
patamar justo, que não me desfavoreça.
Até
que, por fim, me reconheça, num lugar de vida ou de morte, no futuro
que sempre fui.
E
o amor vença nas coisas bonitas da terra.
Ana
Vassalo
Mar
16, 2015 – 00:31
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