[Porque há pessoas que passam por nós e sentimos que não podemos deixar que permaneçam anónimas. Esta é uma homenagem a alguém muito especial que conheci e que gostava ficasse na memória de pelo menos alguns de nós.
E hoje, estaríamos a brindar... Cheers, Marco! Até já, Amiguinho.]
UM SORRISO NA ESTRADA
O Marco... Como recordar um pássaro de asa quebrada, perdido e cheio de frio, que continua a voar? De coração grande e frágil a bater fora do peito, para não ter de aterrar?
Trinta e dois anos de inocência, às vezes bem camuflada pela necessidade de manipulação, arma para a sobrevivência.
Um sorriso feliz de menino para a vida, a cada dia... Um som de assobio, e os cães em desatino, a festa a rebentar, o amor alegremente correspondido. E agora o sorriso mais largo, beijo e abraço, com o familiar “olá, mãe...”
– Não me chame mãe! Que coisa! O Marco tem mãe, então?... - e lá vinha a resposta em sorriso largo, primeiro de volta na ponta, já depois rendido à natureza ingénua.
Quase 3 natais em comum...
Vivia ali, por um qualquer lugar abandonado do Bairro 6 de Maio, até ser assaltado, sabe-se lá por quem em busca de quê. Com os vidros partidos e o indiferente frio de um inverno a rigor, há que procurar novo abrigo, e sai Venda Nova em sorte, um outro lugar perdido, cadeado na porta improvisada e... muitas histórias. Contos do polícia que é amigo e lhe vai protegendo a morada, do exército de aliados que consegue reunir em menos de um sopro para me defender, se necessário for. Seria?... Nunca me interessou: o que era para lá disso tudo, o coração perfeito e ingénuo chegava-me. Era criança, na verdade e na mentira.
Pais? Tinha, sim. Mas a história era inenarrável e ou muito me engano ou era verdadeira. De uma maneira ou de outra, resta para a realidade que fora expulso.
Às vezes, tinha prendas para me dar, e chegava-me a cantarolar, com livros, ou bolachas, um sumo... “Onde é que arranjou isso, Marco? Eu não quero nada, obrigada!”, “Ofereceram-me! É para si!”. Sempre desconfiei que de vez em quando iria a casa, talvez em busca de realojamento, e que o insucesso o faria trazer consigo umas coisas “emprestadas”. O Marco precisava de partilhar, precisava muito de dar o que não tinha, conseguido de mão estendida, à porta do Colombo. Educado e simpático, agarrava toda a gente e zás, conquistava!
Ao hospital levei-o umas quantas vezes, por causa das misturas – metadona e... recaída. Tudo somado, hematomas gigantes, feridas feias, pernas imobilizadas, canadianas, mas... Liberdade, que és minha, não me fujas!, e não parava em lado nenhum.
Ao fim de 2 anos de o massacrar, consegui: a reabilitação, por fim. Chega-me com o seu mais bonito sorriso, impecavelmente limpo, como sempre – até nisso era diferente – de eterna mochilinha às costas, e telemóvel em riste!
– Mãe! Agora vou mesmo! Já tenho telemóvel, deram-me! Vêm-me buscar amanhã. Dê-me aí o seu número, quero-lhe ligar todos os dias!
Gargalhada estrondosa, a minha, já se vê. Sabia que uma vez longe, teria muito mais em que pensar, certo e sabido. Mas lá trocámos os respectivos números e fomos beber o café do costume.
Depois, jantar lá em casa, para a despedida: hamburgers – que adorava – com arroz de ervilhas e cenoura, e batatas fritas de pacote, o sumo, café no fim. Existe algo de mais banal? Não creio. Mas no fim chorava sempre, abraçado a mim, por ter uma refeição quente e uma amiga, a única, segundo repetia (“só a tenho a si, não me pode abandonar, só a tenho a si...”). Taili e Bobby, esses, em desenfreado exercício de saltos e abano de cauda, entregues à mais insana alegria porque havia Marco no horizonte.
E lá foi, o Marco, no dia seguinte. Não telefonou, naturalmente. Conjecturei dias a fio sobre como estaria a dar-se com a dureza da recuperação. Passeava os cães e lembrava-me dele, porque era sempre essa a hora de o encontrar. Como seriam os companheiros? E os trabalhos, seriam muito duros? Aguentar-se-ia sem furar o esquema? Teria acesso à coisa, lá dentro?
Assobio... Cães em arranque alucinado, eu a reboque. É claro, o Marco tinha voltado. Ao fim de uns dias, já se vê... E com ele, também uma história, muito comprida, que deixei de ouvir lá por alturas do meio. Uma pergunta só: quando regressaria? No dia seguinte! Tinham-no deixado ficar um dia por cá e viriam buscá-lo no dia seguinte, já que voltavam a Lisboa. Pareceu-me razoável mas, por qualquer motivo desconhecido, o coração não acreditou. E ficou pequenino.
Mais umas duas semanas sem o encontrar e, de repente, lá estava. Mas agora de barba de muitos dias, ainda limpo, a face muito mais magra e... canadianas. Perdera a última morada. E precisava, de novo, que o levasse ao hospital. Zanguei-me, barafustei, chamei-lhe mentiroso. E levei-o ao hospital. Deixei-o à porta, assegurei-lhe o regresso de táxi e acenei-lhe, vinha-me embora. Olhou para mim, e expliquei-lhe: “não quero vê-lo morrer... e o Marco não faz nada para que isso não aconteça”.
-- Eu sou assim, eu sei, mas não consigo estar preso! Tive que me vir embora.
-- E o resto, Marco, como se resolve o resto?
-- Não sou capaz, sou fraco, eu sei...
Era esta a sua resposta, na maior candura, sempre que me zangava com ele...
Voltei a vê-lo, é claro, algumas vezes mais e sempre em acelerada degradação. Não conseguia afastar-me, por mais que tentasse...
E um dia dei por mim a pensar que há muito não via o Marco ... Talvez um mês, talvez menos, mas algo por aí - sempre me perdi no tempo. Melhor assim, pensei, não tenho de o ver partir, mais um, que ninguém pode ajudar...
Manhã clara e brilhante, mentirosa, de há dois meses. As meninas da loja ao lado a correr para mim e a perguntar em grande excitação se sabia se tinha sido ele ou não. “De quê?” - consegui por fim dizer, a pairar, gaguejando, e sem apanhar muito bem a conversa. “Não sabemos, mas o outro rapaz que costuma passar aí disse-nos, só não sabemos se foi ele ou o outro amigo que também costuma andar a pedir. Mas... educado, de mochila às costas e sempre muito limpo, deve ser ele... Pensámos que a senhora soubesse...”
Encostei-me à parede e cedi. Naquele momento eu soube que tinha sido ele. Não sei porquê, mas a certeza instalou-se. Corri para casa e iniciei uma ronda frenética de telefonemas pelos hospitais da área, cobri todas as hipóteses: pelo nome, pela idade, como sem-abrigo, como anónimo; com as recepções, com os gabinetes de polícia dos hospitais. Nada. Nem rasto. Mas eu não parava de chorar e isso dizia-me que tinha sido ele.
E o tempo foi passando, sem que o Marco me saísse do espírito, por um só dia. Há cerca de um mês, um outro jovem sem-abrigo com quem costumo falar confirmou. “Foi o Marquinho, sim. Com uma pneumonia. Foi ao hospital, ficou internado, mas fugiu e acabou por não resistir.”
Quase 3 natais em comum. De tupperware à porta de minha casa, antes de partir para a minha filha, a comermos rissóis e azevias para celebrar em conjunto, e depois lá ia ele, com o resto do repasto muito bem agarrado, assobiando, contente.
“Eu não consigo estar preso, Ana... Precisava, eu sei, para me curar... Mas não sou capaz, não sou mesmo, preciso do ar livre, de ser dono de mim...”
...
Porque ainda que as situações sejam idênticas, não somos todos iguais. Não é o que fazemos que nos define. É aquilo que SOMOS que nos diferencia.
Marco P. F. Anes, 1979 - 2011... Sorrindo a estrada, sem amanhã.
av.
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14-01-2012 – 13:59
Imagem: Google.
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