Eu escrevo, sim.
Posso escrever por dias a fio, como
calar-me durante meses. Escrevo quem sinto e quem penso. Escrevo-me.
Em cadernos belíssimos, cheiro a novo
e capa rija, com reproduções de Van Gogh ou Monet, a tentar roubar
o spiritus. Ou em agendas que guardo para esse fim, porque o
tempo medido não me interessa. Depois em envelopes velhos, perdidos
na mala, ou nos guardanapos do Café, mesmo os fininhos, que mal
agarram a tinta. Não me conheço sem um molho de canetas na
carteira, e já agora fica dito que é também porque as vou perdendo
uma a uma e a velocidade incompreensível. Porque é assim que sou:
pairante. Escrevo em casa, no portátil, nos papéis, na cozinha, nos
cafés, à beira Tejo ou junto ao mar, nos jardins, no restaurante,
no carro (parado), e até
aconteceu escrever durante um magnífico concerto de Abdullah Ibrahim
(Adolph
Johannes “Dollar”Brand ).
Aos 8 garatujava postais, e qualquer
dia do ano me era oportuno, com “projectos” de poema para os meus pais, que faziam o favor de os
ler com amor. Aos 12 escrevinhava margens, capa e contracapa de
cadernos e livros escolares – infelizmente para os outros e mais
ainda para mim, nunca fui ‘bem comportada’ para os padrões
lectivos. E aos 13 escrevia, então, a primeira “grande aventura”:
devia fazer a Primavera falar, falar alto a partir do coração,
segundo tema proposto na aula de Religião e Moral – coisa de que
nunca me dispensaram e a que eu ora faltava ou simplesmente ignorava
quando presente, até ao momento da diferença. A diferença, neste
caso, feita por professora “revolucionária”. Que, só por acaso,
era também a de Português e logo me “apresentou” a Manuel
Alegre e Florbela Espanca, pouco depois a muitos, muitos mais.
E, exactamente aqui, nasceu o vício, o
dia em que entendi o lugar da escrita: o da minha triste “Primavera”.
Então, acrescento o visível: escrevo
para respirar, como quem diz para não sufocar de vez. A dor, a
raiva, a apatia, quase sempre, porque a alegria vivo-a em pleno. E
quando escrevo o riso é para afastar os dias mais negros que teimam
em querer vencer-me.
Milito nisto: não somos todos iguais,
não temos de ser, e grandioso será o dia em que decidamos todos,
por fim, sobre a inutilidade da padronização. Cada ser vive-se a si
próprio e tem, à partida, toda a possibilidade de viver-se como é.
Aquilo em que se torna durante o processo aglutinador da aculturação
é escolha sua, por mais que não lhe pareça. Pode-se viver dentro
do sistema sem o glorificar, sequer incentivar. É da diferença que
nasce a criação. O resto não passa de comentário, projecto de
ensaio em nota de rodapé. Classificar é desprespeitar o direito a
ser-se indivíduo, único e irrepetível.
Por isso a minha escrita é o que eu
quero que seja, é a minha catarse e é-me indiferente se a procuram
ou não. Mas completamente, mesmo, por mais que tal, invariavelmente,
suscite dúvidas a muito boas almas, e apesar de ser perfeitamente
conferível que me mantenho à margem de todas as (muitas)
capelinhas em que quiseram integrar-me, que não divulgo a
larguíssima maioria do que escrevo, não chamo, não endereço, não
imponho.
“A arte maior serve para libertar”
: algo que aprendi muito cedo com Fernando Pessoa, porque bem cedo a
solidão chegou e me empurrou para os livros. Memorizei e
interiorizei. Para caminho, como farol.
O que quer que seja o que eu escrevo
não visa ser arte nem ser maior, não visa o externo; procura
somente a cura ou a fuga que me faz falta à continuação. A minha
escrita, a que ri e a que chora, é tão somente ‘arte’ de
sobrevivência.
De resto, pouco me interessam as
categorias onde me queiram trancar. Classificar é prender, e eu
lamento sempre verificar que insistem em dar asas à capacidade de se
aprisionarem. Que “asas são para voar” parece ser algo muito
claro, mas tudo indica também que, de tanta luz, resulta a invisibilidade.
A tudo isto acresce a liberdade de
escolha. Porque quem não gosta pode sempre não ler. Ou não aceder
a, ou ignorar, ou ainda fazer-se à estrada para o maior longe
possível. Ou não! Completamente irrelevante.
Por mim, escrevo e escreverei até ser
dia: o dia da Vida que se aceita - e ciclicamente me é arredio, como
hoje, como tantos outros “hoje”. E só depois, passa por mim a
paz. Que me arruma por dentro e por momentos me vira para fora,
tornando-me em algo aparentado com o mundo. O que eu persigo ainda
não tem nome, porque me é desconhecido. De alguma maneira, escrever
tempera o deserto que é não saber.
Procuro. Escrevo para interrogar o rumo
das respostas que não alcancei. Para repor a justiça, tal como a
entendo, que é o direito de conhecer o conhecível. A consciência
de que uma vida não basta para tanto, informa que há que a
percorrer em velocidade para de algum modo equilibrar o nível dos
incumprimentos. Se é ou não producente não me interessa para já.
Procuro a solidão interna quando quero
perceber-me, festejar-me, desaparecer, ou simplesmente viver a
saudade do que serei. E o silêncio incomoda com estrondo, porque
afronta inseguranças alheias, terreno especulativo de razões. E no
entanto, é tão visivelmente simples: o silêncio é o nosso visto
de entrada no mundo que somos sozinhos. Sem agentes de interferência.
Então, a palavra escrita é, será para sempre, o amigo quieto mas
presente, que tudo sabe de ouvir. E que ensina a perguntar.
Um dia, contudo, acredito que
encontrarei tudo isso, que me renova e revive, num ser humano que
hei-de amar. Até hoje não consegui e não por falta de tentar.
Existe, concluí, uma dificuldade intrínseca na espécie em
compreender tudo o que é simples...
Como, naturalmente, existe em mim. Por
isso escrevo: para simplificar.
Escrevi resmas e resmas de textos na vida, que
perdi em ocasiões repetidas de incidentes, negligência, decisões
terceiras, desapego próprio. Restam-me uns poucos que salvei, e mais
o que vou escrevinhando e que a tecnologia, desta vez, vai guardando.
Que um dia, certamente, perderei também, porque há coisas em que a
‘História’ se repete.
Mas a Vida que lhes passei, e que era a
minha, guarda para sempre um lugar da Liberdade conquistada dentro
de mim.
Não posso, não quero e não sei pedir
nada a ninguém, seja do domínio do profano ou do sagrado. Então,
resta-me escrever!
E “o mais que isto é Jesus Cristo...
(que) nem consta que tivesse biblioteca”...
Ana Vassalo
26-Dec-2012 – 15:38(Imagem: Graffiti "Everywhere")
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