NATÁLIA de Oliveira CORREIA
*(S.Miguel, Açores - 1923, Lisboa - 1993)
Poeta, romancista, ensaísta, dramaturga, guionista, ficcionista,
jornalista, editora, tradutora, activista política, deputada à AR.*
"Queixa das Almas" Tardias...
Farta de maresias no campo, com tiros de sal ao largo...
O café é que me aquece, mas as portas vão fechar.
Às onze da lua, de um dia que foi lento. Em ponto.
Vem, vou, vamos daqui até à vida
que um dia pareceu tão certa
mas depois não compareceu. Ainda.
Estava agora ali, mesmo ao lado da distância,
um punhado de homens da bola, sem golos,
conservados em whisky de zurrapa.
Muita, a cerveja cansada, com respostas aquietantes.
E cacos. Muitos cacos na ressaca.
Estavam aqui, sim, quase no mesmo plano
- não fora a consciência que isolo
- almas sem cor nem sorriso,
o palavrão fraco a queimar por validação civil
mas digerido em reticências
(quem sabe se por minha causa
que, estranhamente, nem cá estou...)
Mas nem um rasgo de vida,
um ténue vestígio de sangue,
um instante de rosa, mesmo breve.
Não há pianos, Natália, nem ao fundo nem aqui,
Terra Prometida, roubada de honra...
Estavam, sim, os tremoços,
e os amendoins, com imperial sem território.
Mas nem um “lírio” de respiração.
Somente a espera com nervos,
sem expressão de vida, nem berro, ou salto.
Já nem o futebol valoriza a convicção...
E mais nada, Natália, nem “canivete”,
muito menos “corola”,
sequer “a honra de manequim” que,
ao menos, ainda guardava a honra.
O meu país vai um rio
que um dia esqueceu a foz
- e as almas morrem sentadas, de álcool sem arbitragem.
Escondi-me aqui, à beira de um jantar em projecto,
que o presente é vastamente anorético...
Juntei-me com o papel, que me observa de branco,
imaculado e criança,
e agora sujo-o, sem apelo... De realidade feia.
Não sei se me explico, mas este presente de hoje
é-me desconsoladamente mancha
- e eu lá sei como limpá-lo...
Então, atenho-me que nem náufrago
à poesia que vive,
a que foi tua e dos outros, que pulsavam a mudança.
E penso. Que a pele e o sangue perdidos
correm hoje fraco rio,
caudal às vezes, por um só dia - e é tanto!...
É breve o curso das águas, a escoar-se sem memória,
em triste rede de esgoto, sem mais casa...
E os mares, que restam paisagem,
perderam-se até do retrato.
Foram-se todas as gaivotas, poeticamente solitárias,
e depois os navios com destino
e homem do leme à proa, cantando o tempo devido...
Nada. Somente os ratos em debandada.
E restos de navegar, adiado de praias ou de horizonte.
Os Bravos partiram. Ou morreram.
A “outra palavra para o Medo” ruma ainda perdida
por um lugar na coragem.
Estou aqui, presa em palavras, pensando as tuas...
Já sem a esperança que traziam, num outro dia de longe,
de acreditar alvoradas.
É certo que perdi o Tempo...
Nunca mais jovem - como quando te conheci
e me encantei de palavras com bravura,
de mulheres com nome de futuro. Como tu.
Mas sou a “alma censurada”, hoje,
Sábado de todos os ciclos sem data,
onde os homens se arrumam da Vida
e afogam tristezas de abismo.
Nem o salto cego, pela voz dos deuses, se arrisca...
“Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.”
Perdemos Olimpos e mortais.
E a rota de fé pela Terra é ad aeternum interrompida.
Cada dia menos
“nos parecemos connosco quando estamos sós”.
Mas ainda espero
que a noite gravada de “piano ao fundo”
nos faça perto a música da rosa,
como as tuas, invasoras do mundo
- que o vento já morre em pedaços,
cansado de soprar ermos!
E sou eu ainda, palco em avesso,
memória presa de ternura
por esse mapa impreciso
com "a forma de uma cidade’,
que para sempre a creio inteira,
cidade digna, país que é meu,
por um sonho feito de ontem
em vigília no futuro...
Ana Vassalo
24-Set-2011 – 22:00
Origem da Imagem: Google.