Photo: Prague Street Corner, by Mark Coggins
Histórias de esquinas...
Que nos cravam a ferro e
fogo pela vida, sem que o suspeitemos, sequer, no momento de
acontecerem.
Há uns largos anos,
costumávamos nós, em fim de dia e religiosamente, reunir-nos em
molho numa chafarica rústico-chique das Amoreiras: O Português. Lá
pelos anos de 96 a 99 e até ao momento em que, por fim, após
catorze anos, mudámos de instalações. E eu fui penosamente forçada
a abandonar aquela imensa janela, tão bonita, mesmo em cima da
barriguinha da torre, que todos os dias me enchia o ombro de Tejo.
Perdas... Menores, embora, mas tão significantes.
Ora, retomando,
tratava-se, então, de um grupo insano, que contava com muitos
gestores de conta (comerciais), o director comercial da área Banca,
e ainda uns tantos managers – administrativo, marketing, recursos
humanos, contratos e créditos (eu) – e mais umas quantas meninas
- telefonista-recepcionista, secretárias de direcção, assessoras
de marketing ou de vendas, e, como já se viu, eu própria - o que
perfazia umas cinco, seis mulheres, e no total uns doze, quinze
membros, talvez – a coisa era flutuante, nem sempre estávamos
todos.
Um grupo que cresceu
contra-corrente nos “bons costumes” empresariais, de gente muito
jovem e gente mais quarentona e cinquentona, que conseguiu, por
exemplo, transformar a chatice dos jantares de natal em algo
absolutamente inesquecível, ano após ano.
Fechávamo-los sempre na
noite de Lisboa e, quantas vezes, com a administração agarrada, que
acabámos por converter também, incluindo visitantes da
estação-boa-vontade, como americanos, alemães, austríacos.
Lembro-me que, no início das hostilidades, eles ficavam um pouco
embaraçados e confusos com aquela mesa de jantar diferente, a nossa, e o caos que
ali se armava mas... depois de uns quantos pratos bem regados e o
charuto da ordem, tudo se compunha e a diversão sobrevivia e vencia.
E lá pelo fim do jantar, acabavam por se juntar muitos colegas de outras mesas, em rodinhas concêntricas em volta da nossa, para sessão continuada de anedota e uma chinfrineira inenarrável, vagamente aparentada com música, antes de sairmos para a noite.
Chamava-se, então,
o nosso bendito grupo, BancúMelo (a Banca era a nossa dor de cabeça número dois, e o
Banco Mello, ex-UBP, pareceu-nos o mais sonoro para adaptação), a quem, necessariamente,
arranjámos uns estatutos, e tudo, com o pomposo nome de ESTATUTOS
DO BANCÚMELO EM 10 PONTOS IRREVOGÁVEIS.
A grande maioria foi
cozinhada por mim, o Nuno Sá e o Zé Matias mas a colaboração e o
acordo unânimes deram-se, como se davam sempre. Lembro-me que um dos
pontos instituía a obrigatoriedade de ser “inequívoca e
irremediavelmente avariado”, e outro, a de ser cliente de
caipirinhas, caipiroscas, cerveja, alentejo, douro ou outros afins de
similar calibre, para aprovação de ingresso a novos membros. Ponto
mandatório era a ausência de manias hierárquicas, o que, de resto,
nem no trabalho se quebrava. Éramos, nos últimos anos, uma das
equipas multidisciplinares mais solicitada, aliás, e quase tudo o
que era projecto dor de cabeça – como a Central de Compras do
Estado, por exemplo, a dor número um... - era-nos assignado.
Dia e
noite, luta e gargalhada. E os laços crescem.
Portanto, se o fim de
tarde era a nossa “hora maluca”, com petisco de “Português”
associado, não raras, também, eram as vezes que ali íamos almoçar
para arejar ideias. E é aqui que começa a “minha” história
inesquecível.
Estávamos lá, no
pequenino 1º andar-galeria, cuja arquitectura desenhava um L e à
nossa direita a varandinha, com vista para o andar de baixo. A nossa
mesa situava-se no braço comprido do L e em frente, no outro braço,
logo depois da esquina e parcialmente encoberto por uma coluna, um
casal, em fim de almoço.
Um par lindíssimo. Quando se levantaram, e
ficaram ali, parados, frente um ao outro, constatámo-lo: ela, muito
jovem, vestida “executivamente” mas onde o gosto clássico se
associava a uns toques negligés, muito alta, cabelos enormes, e um
sorriso muito bonito mas que, sei lá porquê, me pareceu triste;
ele, bem mais velho, igualmente muito bonito, outfit de executivo a
condizer, olhando-a fixamente, sem sorrir.
Eu estava com o Nuno, o
Zé, o Fernando, qual deles o mais desbragado, e imediatamente
começaram os comentários: boss e secretária, arranjinho, tralala;
e eu, como sempre, do contra: vcs não têm vida, têm que inventar
filmes em todo o lado, vão-se catar, que comadres, etc, coisa que
invariavelmente acabava com o rótulo de madre Teresa dos aflitos
para cima de mim e que, sabiam-no de cor, me tirava do sério – já
que é público que nunca apreciei a personagem.
Mas é então que os
acontecimentos mudam. Estamos nós nesta acalorada discussão de má
e contra-má língua, quando o inesperado acontece. Sou eu que me
apercebo primeiro e fico estática, hipnotizada: eles estão ali, em
pé, abraçados, agarrados um ao outro como náufragos, a chorar
perdidamente.
Só estávamos nós, e eles confiavam na coluna para a
discrição. Toquei na perna do Nuno, ao meu lado, que não se
calava, e ele olhou. E olharam todos. E a perturbação instalou-se,
ombro a ombro com um silêncio sepulcral. Ela saíu, sozinha. Ele,
logo a seguir. E quando os meus companheiros de todos os dias deram
por si, já eu saía também, disparada e atabalhoadamente, mão a
tapar o rosto, rumo à casa de banho lá no fim do mundo. Lavada em
lágrimas.
Uma menina não chora,
assim aprendi pelo tempo. E assim segui, toda a vida, escondendo-me quando tinha
de o fazer. Não são muitas as surpresas que me desmontam, mas as
deste tipo, seguramente. Talvez fosse antecipação, quem sabe –
penso-o muitas vezes - do meu próprio caminho a acontecer, uns
poucos fins-de-semana depois, corria o ano de 97.
Em mais uma escapadela
a dois, lembro-me que estava eu, aconchegadíssima pela música,
num banco de um desses jardins belíssimos que povoam o meu Alentejo,
deitada, pernas flectidas, uma por cima da outra, auscultadores nos
ouvidos, livro em frente ao nariz, enquanto ele pululava por ali,
agarrado aos seus eternos hábitos de prospecção do terreno.
Estávamos em fim anunciado, por tantas razões, essas questões de
merda que o tempo se encarrega de tornar insuportáveis. E então,
assim, sem mais, lembrei-me deles, daquele par bonito, ao mesmo tempo
que Vitorino aparecia, de repente, trazendo à rádio aquela música,
belíssima, que sempre me arrepiou.
E foi aí que eu o olhei.
E soube, bem fundo dentro de mim, que os próximos seríamos nós.
Levantei-me, retirei os auscultadores do rádio e soltei-lhe o som.
Recordo que, ao levantar-me, ele me olhou, distraído primeiro,
atento depois, e que demos por nós a caminhar um para o outro, num
silêncio que tudo sabe. E depois, começámos a dançar, bem lentamente,
num abraço de carinho muito antigo, a nossa Queda do Império.
Quando a música se
calou, voltámos para Lisboa, sem pausas, que não as do silêncio. E
pouco, muito pouco tempo depois, para sempre se fechava um ciclo inesquecível, de
quase duas décadas vividas ao segundo, sem que o amor tivesse
acabado em nenhum dos lados.
Naquele dia, esse em
que desliguei de tentações o telemóvel, lembrei de novo um certo
casal, único, bonito e triste, cliente de "esquinas", que me arruinara compostura e almoço,
n’O Português. E entendi, como cristais.
Senti, sem espaço a hesitação, que amar, amar muito, não chega.
Senti, sem espaço a hesitação, que amar, amar muito, não chega.
Mas devia.
Ana Vassalo
Nov 24, 2014
Fazes anos, hoje... só
agora percebi, ao procurar a data.
Tu sabias: há ligações
que nunca se perdem...
VITORINO & FILIPA PAIS - QUEDA DO IMPÉRIO
YouTube - "Aveirax"
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