[Carta com endereço certo, esta sim. Escrita há mais de um ano. E guardada. Com partida subsequente, e antes até de chegar, para não variar. É minha, de escrita e alma. E hoje foi teste. Por isso saíu finalmente da gaveta. Outras muitas, com meses ou décadas se lhe seguirão. Há que pôr ordem no estaminé.]
Sou
mulher, como me sei.
A
que corre o tempo de sempre que está por chegar.
A
que não pára, que desassossega e se agita,
na
demanda do que inventa
por
suspeitar que se multiplicam, por aí,
paralelos
de mundos por traçar.
O
tempo não traz medida. Não traz.
Desconstrui
e amplia, desfocando,
apaga
e rescreve mais além,
onde
não há por onde saber.
Eu
sou a de mãos que tremem, congenitamente,
como
a mãe, e como a filha,
e
ainda outras que nem conheci
–
condição genética de mulheres na família,
em
trânsito acelerado pela vida.
Que
quase provoca um treco em quem olha
–
temendo que seja meu o treco.
Não
é. É pura aceleração.
Porque
está viva. E da Vida tem-se pressa.
Sou
a que não sabe continuar paragem,
que
se desagrega e descompensa na rotina,
pensamento
em asa delta no rasto da novidade
que
talvez descodifique a razão.
A
razão de todas as coisas serem o que são
e
não outra coisa qualquer.
Sou
viagem que quer sempre regressar
mas
não vive sem ir embora.
A
inquirir, a saber,
para
descobrir a tradução do mundo.
Eu
sou a menina que não dorme
porque
o futuro faz falta ao tempo.
Que
agarra as horas por chegar,
como
pão, vital para a sobrevivência.
A
que não se compreende
e
raramente é entendida, quando ama.
Porque
amar é muito mundo na mão.
Agarrar
é conquista de sentir.
De
se sentir.
E
eu sou a que agarra o amor pelo avesso,
onde
o tempo não se detém
e
nem sabe que nasceu.
A
que olha nos olhos
e
neles pressente um outro lado
em
prolongamento de si,
explosão
e cor, festa ou inferno,
tudo
presente e coabitante da vida
que
se despe e se banha, que se rende na entrega .
E
depois vence
na
orla e no centro do caminho que se sente
e,
porque sente, dá. Dá-se o que se doa,
sem
inventário de possíveis.
Eu
sou a mulher que se descobre
em
trato firmado a lacre de aperto de mãos
com
a verdade que é espelho,
espelho
de todas as coisas
para
que a dúvida não resista
minando
o que é são e é sagrado,
para
que o dia não se arraste em descrença
do
que devia nascer e caminhar branco,
amor,
amor, amor,
de
amor o globo, a mortalidade
que
antes foi génese
e
há-de ser finais,
porque
é livre pertença da luz.
Sou
a de amores com beijo e segredo
e
de breves raivas italianas
com
paz certa e calmas serenas de lareira,
de
café com gin tónico
e
olhos enlaçados de infinito na água dos olhos outros...
E
meias de lã às riscas
nesse
lado palhaço e menino que me sustenta
e
quero partilhar com um mundo pequeno de grande
que
é feito da gente que franqueio coração adentro.
E
assim, com ele. Aquele que há-de ser,
porque
somos parte de um mesmo núcleo
ainda
que de desfragmentada célula.
Sou
carícia e desordem, onde a agenda não consta,
o
fogo da confiança em entrega
ou
o gelo convocado num mesmo momento de ver,
se
o engano trai a ideia.
Sou
a que não se pode prender,
controlar,
inquirir de intenções
porque
crê a unidade indivisível de dois
onde
o descrédito ainda não chegou ao mundo.
A
que vive o momento pleno de fé no amor,
em
estado de flor, champanhe e eternidades,
até
que o logro se perfile
e
a mentira ganhe o tempo.
Não
que não seja humana e perdoável. Não.
A
mentira não determina nada.
É
o que a tornou necessária que não tem regresso.
Mas
sou a que perde anos de existência
esgrimindo
as marés
em
insano resgate de náufragos
a
cada tempestade que já se adivinha catástrofe.
E desiste de
alma em destroço.
Sou
a mulher que ama força e coragem,
para
que o respeito faça casa.
Ser
verdade não é ser agressão,
é
antes coisa de natureza,
de
chegar e ser. E deixar ser.
Sou
pássaro que ama os céus que há-de cruzar ainda,
porque
a vida não se esgota no aqui que se é.
E
há hemisférios escondidos por revelar
e
universos por povoar de passos.
Sou
a que crê na descoberta a quatro pés
que
caminham o prazer do mesmo horizonte,
a
mesma direcção,
por
saber que o amor é um lugar onde se chega e se fica,
o
único sentido em que se reconhece.
Sou
várias.
E
sou muito a que vive a felicidade por dentro,
em
recolha e sorriso,
os
momentos de intensidade,
de
um quase insuportável auge de se ser,
a
processar, a degustar, para guardar.
O
mito da eternidade
é
a alma a pensar-se num momento pleno
de
agora,
um
ponto fixo no espaço
que
a vida não sabe ainda como deslocar.
Vivenciar
o indizível, por dentro,
mas
com uma mão outra, de silêncio e sintonia,
a
segurar-nos em terra.
Ouvir,
do lugar mais fundo de paraíso,
“em
quem estás a pensar?”
é
como ser arrastado em correntes para uma ideia de real
onde
as margaridas nasceram, afinal, no plástico das usinas,
que
certificam jardins por número de série.
Eu
sou a que ama e sabe quando ama,
porque
lhe é raro,
sabe
como, o quê, o quanto e a quem,
a
cada momento.
E
que parte, ao mais breve aceno de engano,
em
aceleração de estrondo,
deixando-o
ali, soterrado no lugar de ser adeus.
E
não mais o pensa, não consegue, sequer,
reconstituir-lhe
a ideia de retorno.
Mas
que reconhece sempre, com a dimensão exacta
e
o rigor de definição de objectiva,
quando
não partiu ainda.
Porque
há iguais.
Eu
sou a mulher que fica, para sempre
– ainda
que saia pelo mundo em busca de si
– nos
lugares onde se reflectiu num olhar feito de iguais,
como
cristais de água.
Mulher
que ama. Em vertigem.
Que
construiu a vida de vidas muitas em si,
onde
só se previa derrocada e morte.
E
sou aquela que aprende, desconstruindo também.
A
que, por fim, aprendeu coisas de esperar.
Entre
o mar mais fundo e as alturas de estrela, escolheu casa a ousadia.
De
asa navegante e caravelas de vento se nasce um Caminho.
Eu
sou a que acredita, tecendo e desmanchando as malhas de um céu
maior.
Que
te acena no cais, por uma coragem metade.
Com Lisboa em
fundo, como mais ninguém a sabe.
Para a Viver.
Em
Liberdade.
Ana
Vassalo
15-Jun-2014
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