Hoje
acordei com ela, a minha querida Mila, no despertador da memória. E naturalmente, com
a música, aquela coisa espantosa que nos uniu desde logo e muito
cedo. Das melhores memórias de infância e adolescência que
conservo, é ela quem está sempre presente. Tenho pena que não
queira nada com o facebook, pela possibilidade que nos daria de nos
sermos mais presentes. Ou talvez não, afinal, ela decide e sabe o
que faz, e decide que não quer nada com a net que não seja
estritamente profissional ou informativo - tal como eu, de resto,
durante anos a fio, mas que acabei por quebrar. Ela sabe melhor,
comprovadíssimo.
E
somos nós quem perde, porque entre inúmeras outras coisas de acrescentado valor
genético que a compõem, é, sempre foi e continua a ser uma
mulher lindíssima. (Ouviste?, bom.) Lembro-me que os meus amigos,
os mais bonitos – chatice!... –, sempre que ela vinha ter comigo
a Lisboa, faziam paciente e literalmente fila para ser
apresentados.
Mais
tarde, o mesmo se repetia com os meus colegas de trabalho dos
primeiros tempos. Recordo, em momentos certos, começarem a
caracterizá-la descrevendo-a algures por ali entre Candice Bergen e,
depois, Michelle Pfeifer, e, por curiosa que soe a síntese,
um rápido olhar confirma-o sem margem para dúvida. Um orgulho imenso para mim, portanto, que a
adorava!
Ela
e a minha mãe sempre tiveram uma relação muito especial, de grande
cumplicidade, e eram, são, muito semelhantes em tudo, mas
especialmente em aparência. Logo, quando se juntavam, por essas
alturas e aí por essas lojas, a escolher tecidos como tanto
gostavam, era sempre ela a filha e não eu, aos olhos dos empregados
zelosos que nos atendiam esforçando-se por agradar. Lá desfaziam o
engano, as duas, e eu perdia-me de riso com a atrapalhação que se
seguia. Sempre achei que tinha algo a ver com aquela cor de olhos
incrível, que ambas têm e que muda com os dias, ora de mel
transparente ora de verde claro, lindíssimas, uma e outra, de muitas
maneiras possíveis e até impossíveis.
Trocávamos
tudo, lembras-te? Era coisa de euforia, mesmo: discos, livros,
colares, maquilhagem, roupas, perfumes, e o que mais se inventasse. E assim
criávamos novidades para nós, assassinando de raiz mal-vindas
rotinas.
Recordo,
tantas vezes, aquele dia diferente, de uns quantos de semelhante
actividade, em que fomos para a Baixa às compras, em horário
pós-aulas muito cuidadosamente combinado já que tínhamos hora de regresso marcada, e cada uma escolheu um casaco: tu um
midi, eu um maxi, qualquer deles declaração de guerra dos cem
“dias”, ao tempo, especialmente quando cobriam a fatal mini-saia
– que é como quem diz, de seguida fatalmente vítimas do lápis azul caseiro - e
que vieram já vestidíssimos da loja.
Mas, lá está, por pouco
tempo: dois ou três minutos depois, em plena rua, e olhando-nos
mutuamente de alto a baixo, estávamos a trocá-los entre nós em
puro desatino de gargalhada, numa alegria que desceu indiferente e
confiante aquela Rua Augusta de um dia de sol ruidoso e bonito, rumo
ao Tejo. Andavas lá pelos 17, eu pelos 14, não sei bem mas por aí
– lembro que tinhas acabado de entrar para o Charles Lepierre para
fazer o Francês e me falaste dele, o teu marido ainda hoje, meu
primo “adoptado” na hora e carregadinho de charme e classe, das
melhores pessoas que a vida me tem apresentado.
Por
alturas dos meus 12, tinhas começado a levar-me contigo às
festinhas dos teus amigos, que tinham uma banda a que não consigo
lembrar o nome mas de que recordo dois elementos, o Eduardo (bateria)
e o Mário (guitarra e líder da banda) . Sendo eu tão “pequenina”,
aquele teu mundo fascinava-me. Dançámos e cantávamos juntas tudo o
que havia então para dançar e cantar, e quando me “roubavas” o
velho Sony pequenino e a bobines (!), eu sabia que vinham por lá
grandes novidades, pelo que nada me dava mais prazer que deixá-lo ir.
Nunca te disse mas, mesmo depois da nossa maquininha cantante se
baralhar com os sons, nunca desisti dela apesar de ter que me
sujeitar a passar a ouvir a Nina Simone e a Miriam Makeba como que em
fast forward. Coisas de miúda, claro, mas sabes, aquelas eram as
minhas memórias fantásticas contigo.
Nem
sempre o tempo, a vida ou o feitio, este que tenho e que é mais
defeito do que estilo, me deixam expressar o quanto sinto por quem
sinto. É por isso que a escrita é tão amiga. E hoje lembrei-me
tanto de ti, que, apesar de não andares por estas paragens, não
quis deixar passar o impulso uma vez mais. E venho agradecer-te.
Obrigada,
minha querida, pelo tanto que me deste, pelo mundo que me
ensinaste. E muito também, por essa irmã, igualmente especial, que
mais tarde nos veio fazer companhia, a nossa menina tão pequenina.
Pela
cumplicidade sempre alerta, as escapadelas para vivências além da
minha idade que patrocinavas, como as sessões de cinema para faixa
etária não autorizada, os livros, as saídas breves e em escolta, quando “lhes” dava
para me atribuir talentos que nunca detive, como o de “segurar
velas”, e que acabávamos por transformar mesmo em festa, do mais
divertido que a invenção traz agarrado.
E depois, a disponibilidade
para me aturares, a chave do ginásio que usavas tantas vezes para
que eu pudesse ir soltar a vertigem de energia que sempre me foi
velha companheira – foi numas férias contigo que parti o dente,
lembras?, a conquistar alturas ao labirinto metálico do parque
infantil - os torneios de ping pong a duas, as tardes privadas de
basket, o tanto mar que partilhámos, já que as minhas saídas
eternamente controladas tinham em ti salvo conduto parental - como que em reciprocidade vigilante, achavam eles, ahah.
Pelo
incrível sorriso de inocência e descontracção, enfim, que tinhas
sempre guardado para me receber, quando os tempos começaram a bater
forte ainda antes, muito antes, de eu os poder entender, menos ainda
descodificar. Pela música, pela dança, pelos discos trocados. Pelas
brigas de criar bicho, pelas horas de “sisudo” ou de “morri”
que acabavam em estrondo de gargalhada. Pelo mundo criança que éramos
e somos ainda, prima, sempre que nos juntamos.
Obrigada, muito e ainda, por esse
teu filho tão especial. Que prolonga esta cumplicidade fraterna, de tão
iguais que somos também, e faz o favor de nunca me esquecer, de me
ser presente como tão poucos o são na minha nova vida de
restrições, e de, declaradamente, me adorar, tanto quanto eu a ele.
Esse
tal que dizem difícil mas a que só conheço o lado doce, o sorriso
de luz, a verdade do seu inesgotável entusiasmo, a inteligência e
essa insana esperança que o guia, e que, juntas, lhe tornam em
sucesso tudo o que toca: a força que nunca o deixa cair por mais
longe que o futuro se apresente. E depois, o gosto imenso que
expressa em vir periodicamente “raptar-me”, deste meu crescente
auto-isolamento, para almoços de horas sem fim, com feijão preto,
farofa, baked potato, a picanha só porque vem junta, enfim, e um
desfile de caipirinhas para ele e caipiroskas para mim, que tornam as
tardes tão claras e simples, e sempre junto ao mar que nos é casa.
Almoços de criar memória sem tempo, que me deixam em permanente
saudade do futuro.
É
o lado que lhe conheço, o bom, incondicional, com sobrecarga de
afectos bonitos. Tenho de te agradecer, tanto, por isto também, Mila. Sabes,
sempre que o Dartacão aparece no meu mural do facebook, é por ele,
e pela imagem que tenho daqueles olhos verdes lindíssimos e meninos,
quando lá pelos cinco anos o cantava desatinadamente, qual bardo do
Astérix. Meu menino querido, tão pequenino e bonito, que guardo
sempre no bolso da felicidade. E cavaleiro andante, defensor da minha
menina, na primária, onde ele era o mais novo mas nem por isso menos
valente.
Obrigada,
pelo amor. Por serem família sempre, por mais que o tempo e a vida o
queiram contrariar.
Viva,
então, a festa que partilhámos tantas vezes, na mais acelerada
alegria que só a inocência conhece. E a primeira que escolho não
é por acaso: cantávamo-la juntas, sozinhas em casa, música aos
berros de virar cidades, dançando os farrapos só porque sim. E
tudo, depois, ficava tão mais fácil, não era? Bem precisávamos.
Crescer aquele tempo não foi, definitivamente, fácil. Não foi,
prima. Foi de loucos, como tantas vezes gritámos de raiva. Ser
menina era pecado a menos que bem trancada em casa. Tudo nos era
proibido, desde que exterior: o ginásio, a piscina, o cinema, o
café, tudo, só porque “rua”, já para não falar da noite, o
maior tabu – foi preciso casarmo-nos para podermos conhecer a “rua”
depois do sol cair, sem escolta policial ou, alternativamente, sem batota.
Tudo
tinha de ser conquistado em fuga, às escondidas. Bem o soubémos e
sentimos mas fizémos questão declarada e activa de o ignorar e
afrontar vezes sem conta, o mais que conseguíamos e o engenho e arte
nos sugeriam, com os respectivos, “dolorosos” custos associados.
Nada que nos vencesse, de resto.
Hoje
é para ti, minha querida.
Beijo
grande e bem redondo nesse rosto tão bonito.
E
‘bora lá virar a mesa, como tantas vezes fizémos, de tantas
maneiras simples – ou assim parecem, hoje... Mas eram, ainda que o
tempo frouxo e hipócrita as desvirtuasse. Tão simples e
inofensivas, tão proibidas de raiz...
E
nós, de armas às costas! :D
STEVE WINWOOD & THE SPENCER DAVIS GROUP - KEEP ON RUNNING
A loucura, a catástrofe, o fim do mundo em gritaria! ;)
YouTube: "PanpanCucul"
MIRIAM MAKEBA - MAMA AFRIKA
Procuro há séculos o Kumbaya, na sua versão, mas não consta. Fica este video, porque tudo nela vale. E vale mais.
YouTube: "transformed122"
NINA SIMONE - AIN'T GOT NO, I GOT LIFE
Divina. Obrigada, Mila.
YouTube: "DrMandinga"
Ana
Vassalo
Abril
23, 2014