"Thin Air", Mark Heine, Canada
por um dia
fiz-me em cidade a termo certo
e sempre com olhos meios,uma metade em abraço, já outra cortada em fuga
afrontando burocracias p’lo topo esquerdo do ombro
onde morava certa janela de Tejo preso à camisa.
mas demorei no cansaço por um eterno dia a mais.
inundei a minha casa de recantos
como quem parte do frio sem voltaresgatei-me de ribeiros e de sede
por um sketch de amor na vida filmada a lápis de sonhos
e acreditei as alturas rasgando o céu de futuros!
mas voei todas as cores por um incauto dia a mais.
de volta à rua antiga, de portas fechadas
vidros fumados e olhos meiospermiti nuns dias de alma e regresso
uma outra placa, um outro nome de endereço
para cartas de amor virado ao Tempo com vista para a verdade.
mas o relógio dormiu e a cidade não
e eu acordei no lado que não raiou ficar.
e ainda assim lá escrevera, por um único, arrastado dia a mais.
caminhei mais silêncios a madrugar
abortei eclipses na rota das estrelascomprei o bilhete de volta com a moeda da sorte
que no anverso gravava os começos
e que eu guardava criança desde a origem do coração.
segui primeiro o baraço
retomei depois a funda pegada minha
de uns dias certos de sol que às vezes soubera acender
e dei por mim já em casa, de volta aos abrigos de guerra.
o cheiro doce da memória guardado em amores celebrados com moldura
e arcas velhas com tranca segurando a fuga dos encantos.
arejei a vida e rendi-me à saudade desse beijo
que assina a eternidade e queima no lábio a promessa.
mas foi casa... sucede que lá morei por um único, negligente dia a mais.
memorizei todos os trilhos
fiz-me à estrada da mudançafixei-me Alentejo de sonhos
reincidi respirei reacendi
pousei a mala e a espada
e tomei a vila por fora dos olhos meios.
e vi poente o sol aceso
noite em luar lavado de escuridãocéu picotado de branco na luz que retorna ao peito
e encantamento tímido tacteando entre as ameias.
Madredeus no convento, bar, capitéis e gin tónico,
cantar dos anjos sitiando o ouvido, e tardes novas sem guarda,
um conforto milenar de sinos, roubando ao silêncio o eco da planície.
por um, e apenas um, inocente dia a mais.
então, sou hoje a cidade. de vez, a cidade. de uma certa vez que não arde.
e nos olhos que eram meios, passam em fuga lampejosde uma escuridão em marcha.
cedo me farei noite:
vesti-me de continuar
por um, somente um, estático momento, esse indolor dia mais.
que vai longe um tempo outro
do nome teu que me gravei
a ferro e fogo, num lugar de adeus.
da letra o ritona cerimónia do fim, sem paramentos.
e em gótico solene
a carta lavrada em poema exangue,
esse, sim, em que me despedi.
talvez sonhando-te apenas
quem sabenuma paz certa e branca de pássaros,
estes meus olhos meios rasguem o inteiro do vento
e o andarilho que sou, fugitivo que me vence, neles se mire enfim
por um só, aventurado dia a menos...
Ana Vassalo
20-Fevereiro-2012 – 16:55