DIÁRIO SEM COMPROMISSO
19-Agosto-2011
PORTÕES...
Zezé não vai... ficas em casa. E não se fala mais nisso.
Ele não vai porque não quer, mas eu quero ir, mãe!
Sozinha, nem penses! Vê lá bem isso com ele, que não vais para tão longe sozinha.
Não é longe, é já ao cimo da rua! Zezé está zangado, não vai só para me arreliar, mãezinha... E eu quero ir ver o "Ronco", que há tanto tempo que não há!...
Muito bem... Vê então se consegues convencer o Zezé a vir até aqui, que eu peço-lhe para te levar, está bem assim?
Não! Estamos zangados - ele não iria e, mais que certo, divertir-se-ia por muitas luas a massacrar-me, não podia ser...
Nada feito, querida...
Não percebo, mãezinha, o que é que tem o Zezé ir? Ele é pequeno como eu, porque é que ele tem de ir?
A diferença, minha menina, é que quando ele vai juntam-se sempre os vossos amigos todos, e assim já são um grupo... E além disso, ele é um menino, é diferente.
Porquê?
Porque sim, vá, já chega.
Porque sim, porquê, mãe?
Porque eu disse. Já te expliquei tudo, não queres perceber...
Vou falar com a Vovó Firmina... Pode ser que ela o convença... Pois é... e ela está sempre do meu lado, que ele é um bruto...
É agora um bruto! Então? Que é que aconteceu? Vais-me contar ou não?
Não.
Tu é que sabes...
É o portão...
Que tem o portão? Qual deles?
O nosso.
Nosso?! Nenhum dos portões é nosso, onde é que foste buscar essa ideia? São ambos de todos nós, que nosso?...
NOSSO, sim! Se o outro está do lado dele e ele diz que é dele, este do meu lado é meu!
Bom... Já te disse que não... E como é que vocês se vão zangar por causa dos portões?! Não têm mais nada para fazer? Porque não vão brincar, que é mais útil? A propósito... porque não vais tu brincar? Estás há tanto tempo em casa, coisa mais estranha... Que é que se passa aqui?
É o portão...
Outra vez??? Mas é o portão, como?
Ele não me deixa passar pelo dele, eu prendi o meu. Atei-o. Com cordas...
Como??? E... o "teu"???
E os doces, enormes olhos, que eu conhecia da cor do mel, ficaram de repente pequeninos... e escuros... que eu tambem conhecia, às vezes...
Foi! Prendi-o. Também não passa por lá.
Vai já desatar as cordas do portão, se fazes favor! Imediatamente!
Não posso, mãe... Se eu tiro, ele passa por lá e ganha... e eu não quero...
Não podes? Isso tem muita graça, mesmo! Vais e é já a seguir!
Baixinho, baixinho, falava a minha mãe...
E agora é que não vais mesmo ver o Ronco! Estás de castigo.
Pois é, mãezinha... E ele ganha de todas as maneiras, não é?
Mas tu só podes estar louca, menina! Isto é alguma batalha? Vocês são tão amigos, que é isto agora?
É o portão, mãe...
Jurei a todos os que conhecia e também aos que não, um regimento de santos, que não abriria o portão. Agora já era guerra, sim. Nada de Ronco, nada de portão!
Fui-me enfiar no quarto, o cão atrás de mim, como única companhia autorizada... Pelo menos esse, estava sempre comigo....
E a minha mãe lá se esqueceu da história com portas, de tanta obrigação que tinha ainda por cumprir, nos seus sempre longos dias.
Do mato, chegava o som dos tambores, que às vezes queriam dizer chuva.
A minha mãe saíu, foi lá ao lado, dar uns passinhos de conversa com Vovó... Era a minha oportunidade! Única! Mas estava apenas de calções, sem mais nada vestido. Calção era vestido de criança, por ali... E de chinelas, também (raridade... a sorte estava comigo). O resto da roupa no quarto ao lado, interdito, naquele momento ou arriscava-me a encontros... E eu a ter de ir ver o Ronco, que, depois, sabe-se lá quando voltaria... Era tão lindo!
Caras pintadas de mil cores e desenhos, pulseiras, tantas, nos braços e pernas deles e delas, as tangas com saiotes de fitas que voavam movimentos, o batuque dos tambores, e a dança, a dança... E mais as missangas, tão lindas! Perdia-me por elas, andava sempre toda atada.
E a chuva, já a cair e a bater suavemente nas vidraças - um suavemente muito provisório, já se vê...
Gostava tanto daquela chuva! Chuva também era festa! O calor queimava, ela era sempre bem-vinda, desde que não trouxesse barulho de trovoada, que era assustador, de rebentar os céus...
Quando Zezé, Mindinho, Neti e Zaida estavam por perto, corríamos desenfreados para a rua, larga de palmeiras, cada um armado de lata grande e vazia de fruta, a caminho do único destino que conhecíamos: cantorias, palmas, gritos e mais gritos, e corpo de baile, pois claro! Alinhadíssimos (...), ali, debaixo do dilúvio...
Depois, eram as latas a entrar em acção. Apanhávamos a água que rapidamente se tornara em cascata no bordo do passeio, altíssimo, e vá de as despejar inteirinhas pela cabeça do parceiro... Próxima leva, era mesmo sobre a nossa, própria. E mais tralala e gargalhada! Fugíamos, depois. Era costume. Ultrapassávamos invariavelmente a fronteira autorizada... Era o nome da alegria, assinado por nós, sem dia de descanso.
E agora? Já chovia tanto, e eu de calções... Mas a mãe estava ainda do outro lado. Acabadinha de chegar dos seus trabalhos, a voz da tia Ricardina indicava que ainda me restava um tempinho... Riam muito... Teria a minha mãe mudado de ideias e convencido a Vovó a falar com Zezé?... Devia ser, que ela acabava quase sempre por me perdoar...
Já ouvia os rufos lá em cima, agora do outro lado, vindos da cidade, da praça do palácio do governador – era sempre lá, a festa...
E ouvia agora também o riso da Vovó. Gostava tanto dela, com os seus cabelos de neve sobre a pele castanha de ouro, ali, à tardinha, a cortar manga e coco para os seus ansiados doces caseiros, sentada sob o alpendre, na cadeira de balanço... Sorria para nós, que brincávamos, sujos, na terra, perseguindo pobres lagartixas e minhocas, que a seguir dispúnhamos meticulosamente sobre a cabeça do parceiro mais próximo, por entre as mais despudoradas e sádicas gargalhadas.
Quando subir aos telhados não era possível, por demasiada presença adulta nas imediações, telhados esses que nos serviam de rampa de lançamento para as mangueiras de onde roubávamos as mangas, antes do tempo, verdes ainda, pois claro, para depois comermos cá em baixo, Vovó Firmina era a salvação. Mas trazia preceito agarrado. Tinhamos de formar fila, para que ninguém levasse a melhor sobre os restantes.
E nós, que só a ela obedecíamos, lá ficávamos, ali, todos perfilados ao milímetro, esperando a chamada pelo nosso nome para recebermos um pedacinho de coco e outro de manga, cada um, e depois juntarmos num pratinho de onde comíamos em partilha, sentados no chão, em rodinha.
Não era assim tão importante, o repasto. O ritual, sim. Aquela filinha em frente da Vovó, sei-o hoje, era a nossa homenagem de ternura ao seu coração... Era linda, na sua idade, nunca levantava a voz, o sorriso mais bonito pertencia-lhe e oferecia-nos tudo o que nos lembrávamos de inventar. Apenas exigia ordem, porque éramos muitos. À parte isso, ia buscar o céu, se lho pedíssemos...
Decidi. A voz da mãe estava cada vez mais perto, já voltava para casa. Calcei as chinelas à pressa, coisa que já sabemos postiça por ali, no mundo mais pequeno, mas às vezes necessária, enfim, e saí de casa pela porta do outro lado, para não esbarrar com a autoridade.
Saltei o muro, que portão era mentira, de tão atado que estava, e corri para a rua de cima, onde morava o outro portão, mas não vi Zezé... Tinha de estar mesmo zangado, para estar enfiado em casa... Paciência.
Fui caminhando, subindo e subindo, rua afora, compenetrada da minha missão. E de súbito, um toque no ombro... Um amigo, colega do meu pai, fardadíssimo.
Pergunta: que faz a menina aqui???
Resposta: vou ver o Ronco! (sorriso rasgado número um...)
Tu vais o quê??? Mas está a chover, estás de calções... Mas então?! E a tua mãe, sabe?
Sim sim. Mas está em casa... (!...)
Ai!... Vamos lá para casa, vem comigo, que eu levo-te.
Não! Não é preciso – sorriso amarelo número três – a mãe sabe e deixou-me vir – amarelo e desfocado...
E de seguida, sim, esbafori-me sem aviso, rua acima.
Por fim, lá cheguei. Num ápice, infiltrei-me na multidão, não fosse o diabo tecê-las...
E os meus olhos sempre assim, abertos em desmesura, de passeio por aquele espectáculo, ancorada em absoluto fascínio.
Segue-se, então, que lá vi tudo, dancei tudo, berrei ainda mais, pulei e cantei. Desalmadamente, sublinho.
E chorava a lagrimita da ordem, sempre. Também. Pela magnitude do que via. A vida era dali, com residência fixa. Disso, é claro que eu nada sabia. Mas sentia. Mais do que suficiente, portanto.
Depois acabou-se, e já a multidão dispersava. Eram horas de voltar, o final da graça chegara ao mesmo tempo – não era bom o que me esperava... Mas jamais trocaria aquilo pela paz! Nada era mais importante que o Ronco!
Comecei a descer a rua... De repente, um painel ambulante de caras conhecidas... Pois era, com aquilo é que eu não me lembrara de contar. Por ali, a solidariedade tinha nome próprio: a cidade, quase em peso, ia subindo, subindo, enquanto eu descia... Onde ia? A lado nenhum, de especial; estavam, tão somente, coisa pouca, à minha procura...
Ocorreu-me a fuga, mas lembrei-me a tempo que não tinha para onde – tudo conhecido, tudo amigo, zero de esconderijo. De resto, sabia bem que quanto mais fugia, pior era o que sobrava, depois. Para mim, certo.
Rendi-me. E juntei-me a eles. A mãe, sibilante: em casa falamos, menina...
Queria lá saber! A festa, já ninguém ma tirava...
Achava eu, claro. Leviandades de criança... Não querer saber era uma conclusão muito subjectiva e apressada. Quase, quase a chegar a casa, ao virar da esquina, o meu pai... Que estava de serviço e tinha, visivelmente, de lá sido arrancado. Ele e o tal do amigo, à tiracolo...
E agora sim, a coisa estava assustadora. Enfim. Lá fomos todos para casa, cada um à sua, que a romaria era finda.
Zezé, já no quintal, viu-me passar e acenou tristemente. Sabia o que me esperava: castigo de muitos dias. E desta vez, também a palmada a marcar bem a importância do seu ponto de vista unilateral. Inevitavelmente.
É que lá do fundo do meu encanto festeiro, eu não acordara o suficiente para o mundo a sério para perceber que entretanto ficara completamente encharcada, da cabeça aos pés, mascarada de pinto descalço em calções. Pois. Que quando me encontraram, já aquela coisa das havaianas ia longe - naturalmente a mais, para dançar.
O final feliz?
É que durante o exílio dos quintais, Zezé e eu descobrimos de novo a paz!
E, naturalmente, soltámos os prisioneiros.
Ana Vassalo
19-08-2011 – 23:25
Origem das Imagem: "Dead Sand" (globalpost.com)
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