Hoje
fui, contrariadamente e uma vez mais, confrontada com um desses
indivíduos de um certo tipo, muito generalizado, a que costumo
chamar “as pessoas enviesadas”. E tenho de confessar que me
irritam (in)solenemente, desde sempre. Detesto o viés genético que
as conforma. Vivem de obliquidade - «não sei, não sei, talvez,
mais ou menos, é quase por aí, bem capaz, pensando bem, tenho de
ver...» - ou de convenientes, acomodados silêncios tácticos.
Colocam-se
quase sempre a uma confortável distância de matérias e
acontecimentos, estudando secretamente a melhor forma de se
protegerem do mais remoto, ou ainda e apenas potencial, indício de
compromisso com o que quer que seja. Sim, não, talvez ou antes pelo
contrário? Nada.
Ao
longo da vida e em contextos diversos, tenho conhecido vários destes
exemplares, aquela subcasta do viés que são “as pessoas
adversativas”: «concordo inteiramente, mas...; é uma excelente
ideia, todavia...; não excluo nenhuma hipótese, contudo...;
pensando melhor, não é de todo a solução, porém...’». E
acabam nos antípodas do lugar onde começaram.
Vivem
disto. De buracos estratégicos na parede mais próxima onde se
escondem ao mínimo sinal de avanço para uma decisão.
Lembro-me
do Jorge, um suposto amigo durante longos anos, que o tempo viria a
identificar num registo claramente oposto, e a quem jamais consegui
ouvir um sim ou um não, sequer um talvez, a qualquer pergunta que
lhe fosse colocada e independentemente do respectivo teor. Com
efeito, um invariável «não sei, não sei...», foi tudo aquilo a
que todos nós, os seus amigos, tivemos direito durante uma vida, e
nem digam que iam dali. Baptizei-o, naturalmente e em concordância,
de Dr. Não Sei Quê.
Não
se pense que era um indivíduo particularmente mal formado, cínico,
hipócrita, oportunista, como tal postura poderia sugerir. Nada
disso. Era um indeciso patológico, um militante involuntário do
medo: de tudo, de nada e de um par de botas. Paralisava. E era então
que tendia para se aliar àqueles que tomava por mais fortes, segundo
a sua própria escala de valores.
Era
visita da casa, família, quase. F. tinha há muito desistido de lhe
fazer as perguntas que a dado momento se tornavam inevitáveis,
apesar de ser ele o grande amigo e eu a adoptada, por afinidade,
deixando-me invariavelmente incubida da missão de partir pedra, que
era a de conseguir arrancar uma resposta qualquer que conduzisse a
uma necessária decisão.
«-
Jorge, vamos todos jantar? - Não sei, não sei... - Já sei que não
sabes mas vamos ou não? - A ideia é gira mas... - Jorge, vais à
‘função social’ connosco ou vais já para casa? - Não sei, não
sei... - Então ciao, até qualquer dia. - Não, espera, pensando
melhor... - Jorge, queres boleia para a faculdade ou vais lá ter? -
Não sei, não sei... Tá, adeus. - Espera aí, que coisa,
feitiozinho soviético!»
Pois
claro. Fiquei sempre à espera de o ouvir rematar com uma qualquer
máxima queixosa do tipo “o inferno são os outros” mas (mas!)
por inerência, como se deduz, nunca aconteceu. Afinal, estamos a
falar de uma asserção, algo demasiado volátil e irresponsável
para qualquer adversativo que se preze.
Devia
chegar de exemplos, dir-se-á. Engano, falta o melhor. Aquele melhor,
numa noite em Avis, com boa parte do staff arqueológico todo junto
de férias, jantar lá pelas 7:00 no bar do mosteiro - que isto de
enxadas, picaretas, peneiras, colheres e pincéis traz muita fome -,
copos e estrafego demorado num deixa-te ficar em que fomos ficando.
Lá
pelas onze, vá de regressar ao parque. Constatação colectiva: onde
é que já vai o jantar! Tudo fechado, nem uma nesga de néon
comercial, e fome de cão. E eis que num raro golpe de sorte, aquela
miragem de cafézinho escondido se perfila – oh santa ermengarda
dos famintos desalmados! - já em pleno encerramento de portas. Qu’é
lá isso?, raide concertado, invasão pela comitiva.
O
que é que há de simples para comer?, ah e tal, como assim, a esta
hora?, qualquer coisa, tanto faz, temos fome, ah tá bem, batatas
fritas! Resmas de pacotes, cada um com o seu exemplar bem guardado,
que é como quem diz, todos excepto o Jorge. Queres batatas, Jorge?
Não sei, não sei – forreta, insuperavelmente avaro, coçando a
cabeça à espera da borla. E foi ali, naquele momento, que a
cabala, em armas erguida, elegeu o dia para lições. Confiante,
surpreendeu-se já cá fora, portas fechadas, sem nada para comer.
Moita-carrasco, parte de fraco nem vê-la.
Chegados
ao parque, todos dentro dos carros, aos molhos, cada um armado de seu
pacote de batata, e o Jorge, banco traseiro com ele, nada! Avaro mas
cómico, que isso ninguém lhe há-de negar, arranca, lá de trás,
num esganiço em falsete, “quero batatas...”, que desmanchou o
pessoal todo. Não teve sorte. A aposta tinha de ser ganha, a lição
exemplar. QUE-RO-BA-TA-TAS! Silêncio sepulcral. QUEROBATAAATAS –
gutural!
A
Natacha, em fase adolescente e concomitante boa vontade fora do
mundo, vá de estender as batatinhas lá para trás. Mas também não,
argumentou aquele braço forte de permeio, a abortar a tarefa – F.
em acção. Resignada, vira-se para ele, encolhe os ombros em sinal
de desculpa e ri-se perdidamente. E lá foi, noite dentro, aquele
espectáculo por mais de uma hora, num desenfreado QUÉ-BATAAATAS
mostrengo. Que, por sinal, foi adoptado pela família cá de casa e
dura até hoje, mesmo ao lado do “não sei-não sei”.
Mas
bolas, não foi por aí que tomámos a Bastilha. O Dr. Não Sei Quê
manteve-se vitaliciamente inamovível, no seu posto de indeciso. E a
moral é directa: não há cura para o viés.
Depois,
há o mundo do trabalho, onde estes enviesados adversativos
constituem aquela tal, única e legítima, verdadeira praga. Entopem
as reuniões a poder de longos monólogos, complementares da
complementaridade incompleta anterior, expandem-se longamente por
pontos essenciais que rasam a essência teimosamente ao lado, e vá
de argumentar, insistente mas paulatinamente, em modo conta-gotas,
vá, sobre as posições que ainda não decidiram se defendem ou se
deixam para apreciação ulterior, num razoado de colateralidades sem
fim.
E
tudo naquele registo de encadeado argumentativo e lógica lapidar
que acha cauteloso rumar ao Algarve, passar num pulo por Coimbra
seguindo para Badajoz, para chegar por fim e em segurança a Monção.
E quando perguntamos porquê Monção, afinam, irritados com a
gritante falta de visão interlocutora, ganindo ofendidos enquanto
disparam tratar-se da melhor opção para chegar a Kathmandu.
Tenho
de admitir: não tenho um fósforo de paciência para gente assim. O
pragmatismo, aquela linha de raciocínio directo, apostada na
aplicação prática de um postulado da geometria plana que determina
ser um segmento de recta a distância mais curta entre dois pontos,
representa para esta trupe obliquada algo de aparentado com uma
ciência obscura, assim na linha do paranormal.
E desconfiam, retraem-se, indagam apreensivos, muito embora tenham de pensar, mas com calma, se
optam pela roda, o carro de bois ou a locomotiva. Há que dar-lhes
tempo. Do passado, que isto de futuros é conceito abstracto, a
explorar com esmero - e ainda que, todavia, quem sabe, uma vida não
chegue.
Até
dar bronca, claro. Aí pára tudo, aqui d’el-rei, que nunca
falharam o seu contributo, ao contrário dos restantes baralhados
incompetentes nas suas interpretações do viés e respectivas
conjunções várias.
E
é quase sempre nestas alturas que me assalta a bernarda e sou tomada
de uns rasgos de bestialidade adversativa condicionante: «não sei,
não sei mas talvez não fosse mal pensar melhor e nos entretantos
que antecedem os finalmentes, anda cá comigo, aqui à janela, se faz
favor, estás a ver ali a esquina da rua com os anúncios luminosos,
mesmo à direita, a piscar tão lindos?, faz-me a gentileza e vai lá
num pulinho ver se eu lá estou».
Não
é que não vão, porque vão mesmo, se dúvida houvesse. E antes
assim que infelizmente, bem vistas as premissas.
O
problema é que voltam.
Ana
Vassalo
Jul
3, 2016