[Escrevi esta
coisa qualquer por alturas de ano novo, com dois ou três amigos em mente,
infelizmente sequestrados nos mundos da “depressão” ou a caminho
dela, em estado de sofrimento indescritível que, às vezes, só às vezes, me dão a conhecer em formato abreviado. Com carinho imenso e muitas dúvidas
partilhadas, guardei em mim um desabafo, noite adentro, que não mais parou de martelar as horas. E então, num impulso, soltei-me à terapia costumeira que conduz a mão que leva a ideia, e a caneta, de uma penada, verte para o papel, em velocidade de estrondo. E é por eles, por mim e os meus cíclicos desencontros comigo, e, certamente, por quem entende, que a deixo aqui, seja lá qualquer coisa o que não for.]
“Quando um
coração se fecha, faz muito mais barulho do que uma porta.” - António
Lobo Antunes
“EVIDÊNCIAS”
Há um mundo
subterrâneo, ainda que vagamente entreaberto, num tipo muito
específico de autores que só quem vive uma vida sobrevivente de uma
espécie de estádio latente, em recolha, de “loucura” dominada
por uma razão a que se aprendeu as voltas e se manipula para a
normalidade, reconhece. É um universo que não se mostra mas existe
no avesso das coisas que quase sempre se prefere inexplorado. É um
arrepio de verdade monstra na complexidade emaranhada dessas tais muitas
coisas a que olhamos o lado simples nos dias para que o sono de
adaptação não se acorde.
Há espaços
negros de revelação, do óbvio que afinal não era. E há doença.
Doença de saber as correntes de força e desvio que se debatem na
mente quando se procura outras explicações. E depois há a
fronteira... que não há. Essa tal porta que se cria entre sanidade
e ausência de fuga para outras paragens difíceis de traduzir, e que
sabemos a qualquer momento pode escancarar-se. Ou fechar-se com
estrondo, dependendo da perspectiva.
Por baixo
das vidas quotidianas sem lugar a tempo de olhar, move-se em lava um
mundo de infernos por arder mas à espera, em ânsia de arder e
queimar todas as portas de fronteira, à conquista da luz dos dias.
Para lá do normal - ou do que se pensa assim.
As
evidências são para os estúpidos, terá afirmado Lucien Fèbvre
numa conferência – dizem... Nunca consegui citar isto, para debate, sem que a
polémica estale de imediato e se torne guerra em segundos. E no
entanto, a mim, surge-me pacífico. É evidente tudo aquilo que se
explica a si próprio, sim, mas isso acontece num mundo de combinação
prévia do que cada coisa representa, do que se enunciou que “é”,
mas que afinal se valida somente naquele código de comunicação da
lógica que se tomou para formulação.
E pouco me
dizem argumentos, que já ouvi, como “o vidro parte-se e isso é
uma evidência”, porque o que para mim subsiste é saber o que é o
vidro, porque se chama assim e não vatencurst, blablabla ou papel;
como é que os cacos retornam a vidro e o vidro se cansa em cacos;
porque há estruturas moleculares tão diferentes; porque é que o
peso depende da gravidade que o torna, ao vidro, mais cliente de
quebras; porque umas vezes, o mesmíssimo vidro, se parte quando cai
e outras não; ou porque há quem pense que importante é saber que o
vidro se parte, para que as evidências descansem.
Ou, por
outra via: porque a visível evidência do nosso quotidiano sistema
de notação decimal (base 10), por exemplo, que nos permite
rapidamente fazer contas no café ou nas compras, é inexistente nos
vários outros sistemas de numeração - binário (base 2), octal
(base 8), hexadecimal (base 16) ou sexagesimal (base 60) - e
vice-versa: é a combinação prévia do código de “existência”
que lhes confere, a cada um, a dignidade de evidente.
Há por aí
milhões de perguntas na “evidência” do vidro ou do número,
resmas de dúvidas na evidência da “verdade” - e, por arrasto e
implicitação, da “mentira” - que não vêem com frequência o
seu nome no dia “normal” das ideias.
E a ideia é
uma construção em construção, que se desenha e se apaga, e se
edifica de novo aos ombros de ideias vizinhas que passaram pela vida
num momento determinado de aprender novos desenhos. Os que
procurámos, apenas. Porque eles fecham-se em copas, os desenhos
disponíveis de cada ideia: passam discretos, como quem cultua o
anonimato, até que alguma nova associação ocorra por repetição
de passagem em busca, e os reconheça por fim.
Há uma dor
pequenina por detrás de cada “evidência” que pode virar a ideia
de conhecido num segundo de descoberta das muitas “outrevidências”
de cada verdade incontestável. É a dor da inconveniência de saber
o diferente.
Quando se
baixa ao inferno da verdade que mostra a inverdade de todos os
estabelecimentos que respondem a um código de lógica restrita, não
se volta jamais à origem. O ponto de partida mudou-se entretanto
para outro lugar de incerteza que é preciso encontrar de novo para
descodificar. É vasto o universo e nele vão ficando perdidos muitos
pontos de partida que um dia foram exclusivos e auto-explicativos.
Lá por
baixo do mais baixo plano da vida, movem-se retratos de realidades
que não se mostram à superfície mas minam as instalações da
superfície. Sente-se que há mundos paralelos em potência de
formação na verdade que se conhece mas que se escusam à verdade
que se conhece. E desce-se, desce-se até ao limite do visível e
palpável por uma mente instável, de curiosidade, doente de
ansiedade por conhecer o que só acena, lá em baixo, onde o inferno
é a certeza de que não somos só o que alcançamos em modo de
normalidade e que o que percepcionamos em falta não se deixa
alcançar sem a dor do desvio classificado em catálogo.
A “loucura”
que dominamos todos os dias para a aceitação torna-se em mão
fechada que o medo não nos permite usar para abrir portas outras, as
que guardam universos de muitas outras evidências em marcha. Porque
a verdade é transitória e os olhos só vêem o que o cérebro
autoriza num dado momento, o que se escapa das poucas portas
entreabertas.
E provisório
é tudo, e TUDO é SÓ o que se conhece, e sabê-lo dói como parto,
quando por fim se percebe que estamos em modo contínuo de nascimento
para muitas vidas amontoadas numa só que se ergueu em domínio de
liderança e silencia as restantes, para que ela própria seja
possível.
Depois de
saber... não há como ignorar. Mas obrigam-nos a ignorar. E
chamam-lhe normalidade. Normalidade que mais não é do que aceitar
como evidente uma só lógica de detecção de evidências, quando
sabemos que ela se subordina à manutenção de uma estrutura ideária
do “visível” que responde à própria preservação do edifício.
Somos
sequestrados dos dias que não descobrem. Que se sentaram e vivem a
quietude da “paz de espírito”. Volátil como é, vagueia,
encontra, pergunta, defronta-se com os silêncios de serviço e
retorna a casa, onde por fim se resignará a uma cadeira de
apaziguamento, estrategicamente colocada à porta da escuridão. São
loucos os que se levantam, a destroem e reconstroem para novo fôlego,
para a arrasar de seguida, uma vez mais. Os que se sentam só para
descansar, se levantam e partem vezes sem conta à demanda do
entendimento são os loucos do mundo.
Há livros,
autores, que nos levam de viagem ao fundo do inferno de desconhecido
que somos - e algumas vezes vislumbramos, se tivermos sorte. Porque é
lá que se encontra a explicação da dor. De saber que não podemos
ser tudo o que podíamos ser de mundo. Mas a ousadia dos que teimam
custa caro. Por isso andamos por aí, tantos de nós, disfarçados de
está bens. Dá jeito.
O resto,
há-de compor-se. Em normalidade.
E isso,
contaram-nos, é bom.
Quando, ao
ler, se entra num mundo determinado que alguns autores nos emprestam,
percebe-se que a evidência abana, que tudo nasce frágil, em colapso
iminente, pronto a ruir. Viram-nos o mundo do avesso, o lado que
importa e que responde. Por isso gosto deles. Há décadas sem fim.
Ana Vassalo
02-Janeiro-2014 – 07:59
Título: tradução literal de excerto de "Here's to the crazy ones", de Jack Kerouac, tradução que pode ser também convertida em "Os deslocados".