Flame in a Glass
No Rasto da Claridade
As luzes, tristemente baças, confirmam
enganos ópticos no desarrumo das almas.
Ainda.
Mas o café há-de chegar, muito e
quente, celebrando extremos endógenos. Eu.
Ainda.
Jantar à direita, super bock em frente
e caderno à esquerda, de uma mesa ínfima e sobrelotada de
ansiolíticos de recurso, por entre multidões da bola no habitual e
cúmplice café da rua, assim, de um nada saído sabe-se lá de onde, apercebo-me pairante pelos meandros antigos de um casamento roubado
à utopia, com garra e fé, e vontades invencíveis por discordâncias
paternas. Vontades combatentes, nuns dezassete anos meninos,
decididos à “felicidade, por fim”, de uma claridade a
transbordar de sonho. Antes.
Antes.
De um depois agarrado ao
desequilíbrio. A vida no arame. Em vertigem de queda. E a fuga
reparadora, os esconderijos, de trevas no avesso de mim: o cíclico
isolamento de reciclagem. Que ganhou força de hábito e, eterno, se
fez companheiro até sempre.
...
Era ali, sim, aquele, o lugar fechado
de horizonte e terras, com lógica de nunca mais e tópica inagendada
de promessas, que me tinha acolhido em regime de chão e
pequeno-jejum por umas férias sem prazo. Nada de Tibete ou
romantismos existenciais, apenas fuga e dormência intentada em casa
de coisa alguma. Ali, no fundo do mundo mais fundo: eu.
Os muros, em ruína, transmutavam-se
com a noite e os intervalos de cal cansada de sombras projectavam
vultos inesperados, olhos vigis e dinâmicos à espreita de todos os
medos conhecidos, e mais os outros que assim se faziam chegada.
O espaço era largo e abrangente de
acantonamentos procurados. Por isso me escondia ali, no inferno
estático de um futuro que grita a urgência de uma paz de grutas.
Onde o mar se guarda de luares e se furta a marés rejeitadas, por um
vestígio de descanso.
As palavras não tinham como evadir-se,
por lá, onde a possibilidade perdia significância de expressão.
Atropelavam-se, amontoadas de pensamento. Galgando lugares à frente
na fila de chegar cedo e, curiosamente, não para morrer. Buscavam o
som, o eco ou o grito, a tinta escura da solidão em marcha ou o
écran da debandada em libertação. Inevitável mas escusadamente.
Os ventos, desencontrados, entravam
desenfreadamente, evocando que ouvir sugere a existência de vida num
qualquer lugar do tempo - que se perdeu. Por vezes, até, rompiam
silêncios uns dias de barcos e trompas, abrindo vagas ao caminho no
esquecimento do mar.
Chegavam ruídos de códigos, de SOS,
sonhos de náufrago inconformado, em Morse, que um dia de há muito,
muito tempo, adaptei para os sentidos: para o ‘traço’, o
pestanejar demorado; rápido para o ‘ponto’; olhos bem abertos,
para o ‘espaço’.
Assim, uma arte exclusiva, de comunicar
pelos olhos desenhando letras na luz... Lembro que “amo-te, Ana”
tinha muitos traços, muitos olhos fechados longamente, tal como
“mentira” muitos pontos, de olhos céleres e fugitivos.
Fatalmente desencontrados no encontro. Um certo tempo que hoje me
escapa, mas me identifica como esposa convicta de um
vagamente-marido, que me (des)acompanhava, etéreo, em traços e
pontos de inventar a vida, a mesma que nunca logrou entender, dela se
demitindo sumariamente, a cada segundo, mas tentando, sem tréguas,
arrastar-me consigo, em roubo contínuo de ar e esperança, ou
somente de sobrevivência, sem nunca o assumir ou sequer aperceber.
Talvez por isso, a memória desse ‘eu’ se torne hoje,
instintivamente, em terceira pessoa do singular, por imperativo de
subsistência.
Por tanto ou tão pouco, então, as
fugas recorrentes, de um inferno por outro, da superfície de outrém
até ao fundo de mim, descendo para me achar.
E ali, naquele lugar de vácuo, com
contornos de noite e curta-metragem a preto e branco, o incontornável
protagonista de mistérios, que agora era eu, sentia o adensamento de
cada partícula de não-evento, do nada tornado coisa. Coisa de se ir
vivendo, ou algo aparentado que lhe suceda.
E pensava, tantas vezes, que os mortos,
em matéria flutuante e invasora, intangível mas pesada, deviam ser
a própria antecipação de mim nesse presente de identidade
silenciada. Eles e eu, eu e os mortos em comunhão de idades, eras de
ausência.
Ocorria-me, depois, que mais fundo que
a morte era aquele fosso imenso e temporariamente intransponível,
onde descia ciclicamente, sem presunção de amanhãs, tão-pouco a
vontade, buscando protecção contra interrogações imobilizantes –
o absoluto do paradoxo para quem se autoentorpecera no confortável
conhecido de uma escuridão protectora, sem horas. Cinco anos,
buscando momentos sem horas.
Clandestinamente, contudo, uma nesga de
luz, a querer filtrar-se por entre rochas e negação, ferindo-me os
olhos de Vida. E depois, sabe-se lá como ou porquê, num qualquer
raiar de sol por entre praias, inquiri de areais e arrisquei saudade.
Pus o pé curioso mas em cuidado do lado de fora, e um sussurro de
brisa tomou o coração de regressos.
Saí. Cobrindo o olhar com mãos certas
de abdicar a esperança. Mas saí.
De quando em quando, entro o mar, que
acarinha o melhor de mim, e afoito-me a novas visões de construção,
ou de renovação, em oxigénio de mundo. De quando em quando, tento
a Vida. Que intercalo com fugas por abrigo, que respiram em grutas. O
espaço que me concedo entre lugares de ser e outros de sobreviver é
aquele em que me perco no mundo, sem casa que me conheça.
Acredito-me na luz, como na escuridão.
É outro, a que ainda não dou nome, onde me perco em fragilidade de
procura e mudança, o lugar que me escurece a fé. Porque não me sei
no limbo. E ajoelho e soçobro como prece em terra surda. De um deus
que não me resolve.
Amanhã será verdade.
Possivelmente.
Ana Vassalo
16-Jul-2013 – 23:02
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