Strauberry Hill
by
Jean Tatton Jones
De Amor e Esquecimento
Acordo de mim a cada dia como se o
mundo começasse aqui, exactamente em mim.
Cá dentro, na mente, converso com a
memória os momentos, os rostos que sei ou imagino e me trazem para a
vida.
Por mais que essa força indomável que
me asfixia me empurre para baixo, existe uma outra, poderosa e
completamente desconhecida que me impulsiona para cima. Não lhe sei
o nome, mas imita tudo o que não tenho, no momento em que não
tenho. Passa por dentro de mim, sem testemunhas, e ensina-me o
caminho da saída. Para a Liberdade que não tenho, que me falha, o
ar que tenho preso há eternidades, como que em redoma.
Penso que se o amor me escolheu a dado
momento e por ele eu escolhi abdicar de tudo o que preciso a cada
microinstante para respirar, então, deve estar certo e não o
contesto. A escolha é minha e sei que faria tudo de novo se um
qualquer mecanismo temporal me levasse ao mesmo lugar. Esse, que me
fixou há quase seis anos e todos os dias me faz questionar as
razões da Vida e de Deus mas me traz sempre de volta à mesma
verdade – a minha.
Tem um nome e chama-se Mãe. Uma mãe
que foi lindíssima e hoje é bela, ainda, na doença, que voava e hoje está
presa no corpo. E na mente também. Que amava tudo e todos por dentro
de um sorriso de açúcar e olhos líquidos de ternura, e agora nem
sabe sorrir, já não fala, apenas articula palavras sem som,
porque o corpo desaprendeu o básico. Uma Mãe que me chama mãe...
e isso diz tudo. E que eu amo até ao limite do insuportável, que
olho todos os dias com a dor terrível da frustração por não poder
ajudar mais. Mas que escolhi, ou que, por tudo isso, escolhi acima de
mim.
Mas acontece que eu preciso de espaço,
ou de espaços, amplos e abertos, com céu e mar e verde e horizonte
bem longe. Preciso de correr ao vento de braços abertos, de respirar
o mar, de me deitar na terra, no verde dos prados, dançar na chuva,
sentir os cheiros e ver a luz. Não tenho. Perdi-os para muitas
paredes que me cercam quase vinte e quatro horas por dia. Então, eu
que sou incapaz de viver uma porta fechada à chave se não for eu a
rodá-la na fechadura, morro, pedacinho por pedacinho a cada momento
que entra nos meus dias. (Não será por acaso que alguém que amei e me
amou ao longo de 18 anos me chamava bandagas passarinho...)
E de repente, esse tal que é "não sei
quê, nasce não sei onde e dói não sei porquê", traz-me de volta,
reinspirada, como quem absorve todo o ar do universo, e vence por
dentro de mim.
Amo. Amo desalmadamente tudo e nada.
Pelo pensamento construo mundos, de insanidade ou de sossego, do que
preciso para continuar. Abraço silêncios de conciliação comigo
para depois partir ao vento com asas recosturadas que tudo sabem dos
lugares de nascer livre.
E é como se me sentasse aqui, frente à
janela aberta para um Alentejo sem fim, de sinos às cinco e
planícies amarelas, restolhando no vento segredos de terras de
outras vidas. Ou de um sol a deitar-se em África com cheiro de terra
molhada e a luz branca das avenidas largas que me soltam no caminho
em partida, além-mar, pelos navios, além-longe, um além-sempre.
Ao lado, talvez o meu melhor amigo, que
me escuta na palavra e no silêncio, que sabe o momento que é do
Outro, o momento de ficar apenas, como rocha, ou como ombro, ou como
porta aberta para a luz. Sei-o ali. O que penso quando falo por
dentro de mim não o olha, mas sabe-o e é importante. É bastante.
Perco-me, sim, pelos aléns que
construo na minha janela de viagens. E enquanto os olhos fogem mundo
afora, eu entendo, num lugar bem mais fundo de mim que eu própria,
eu entendo que amo. Que a olho nos olhos, em aventura de conquista,
em passo de roubar futuros, e a puxo para mim no mais profundo beijo
que a memória guardou de tempos de beijar. Amo-a com força e com
raiva, amo-a com regresso. E os abismos que venço, as noites sujas
de morte que me acenam com lenços de paz e alívio, capitulam e
assinam a rendição. Volto por dentro de um dia mais branco que me
carrega de Vida. Essa, que amo até à loucura.
Porque amar é a minha condição
natural, tão simples, genética, minha.
Pelo emaranhado que se vai desatando
nesta cabeça em permanente desalinho, surpreendo-me a concluir que
jamais odiei. Não há na memória registo do mais pequeno vestígio
de ódio por alguém. A raiva sim, compareceu, tantas vezes de partir
sem opção, tantas vezes de verdade subvertida, amarfanhada e
indigna, que nos quer sitiar, roubar identidade e submeter,
arrancando à inocência pedaços irrecuperáveis. Essas tantas
vezes de bater a porta com estrondo e deambular pelo mundo sem rede.
Mais uma vez. Mas provisória. A raiva é provisória e sucumbe logo
que nos reencontramos na nossa pele, que responde ao toque da
autoestima (re)conhecida.
E eu amo, de novo. Tenho amores de uma
vida, de eras partilhadas e construção de futuros eternos, enquanto
duram... Comigo é sempre para sempre. Com a vida não. Ela escolhe e
actua, sem cuidar de opiniões. Acato, depois de muita luta inglória
e parto. Não deixo a ninguém a tarefa de fazer as malas. Não
deixo. Saio sempre pela porta grande.
Mas amo.
Tenho amores outros que nunca sairam da
mente, que não foram, sendo tanto. São aqueles de uns tempos de
renúncia pelo encontro dentro de mim. E posso amar muito, assim.
Porque idealizo e abraço o imaginário. O perfeito imaginado que
agarro do Outro e guardo calmamente até que a vida se revele e
decida se o perfeito é sonho de cristalizar ou se é vida e
acontece.
No peito estouram tempestades e a
surpresa, que se arrasta e não define, dói como grades apertadas na
alma. Mas acredito que há um tempo de verdades e de fins. Espero por
ele, porque enfim, aprendi.
Nunca aprendera a espera, até não ter
opção e ela me tomar a mim, por domínio. Arruinei bocados largos
de vida por não saber esperar, por não querer esperar. Em todas as
frentes. E ainda assim, passando por entre os destroços,
reconstrui-me e venci, em todas as mesmas frentes.
Hoje, é um tempo de sossego por fim,
aprendido por inerência, não por que o procurasse. Nunca me dei
espaço a respirar entre eventos, entre amores, entre caminhos. A
pressa, a pressa de saber o que está no ponto-espaço seguinte, como
me torna esse lugar, o que traz de saber e emoção! A surpresa
perseguida, isso sim, que é inimiga da espera e dos dias todos
iguais. E depois, às vezes, a dor fina e paralisante da resposta que
não se antecipou...
Sempre quis viver depressa, em
velocidade. Até dormir, como em tempos um colega me sugeria, era
“depressa”, para ganhar tempo de vigília para a vida. Mais
tarde, lá pelos 35, resolvi o assunto, deixando de dormir, como quem
diz reduzindo ao mínimo a inevitabilidade. Por entre directas a
vencer deadlines, intercaladas com 2 ou 3 horas de sono, agarrei o
tempo e fintei-o, ou as habituais 16 horas de trabalho, seguidas de um
sono reparador em dose normal, matar-me-iam por falta de tempo para
acordar.
Agora, este tempo que vivo e tudo me
relativiza, que me rouba oxigénio e me retrata de cara para a
parede, encarcerada dentro de uma opção assumida e inquestionável,
sem volta nem solução à vista, ensinou-me muito, senão quase
tudo: que para sobreviver é preciso também validar os tempos de
calma, essa que nos pensa para nos recuperar. O que não tira tempo
para pensar não subsiste. Não há como viver o improviso
eternamente. Mata. As finanças, a confiança, os amores, o futuro. A
inocência. O improviso indiscriminado aniquila tudo à sua volta.
Mas também nos renasce: ensinando.
Volto a hoje, este dia de terça feira
que me acordou flutuante. Guardo em mim um amor imenso, neste tempo
de renúncia. Que não validarei. Há vidas que não se podem
partilhar ainda que se queira. Conduzem somente à destruição: de
um e de outro. E assim, do amor. E ficamos, depois, despojados de
sentir durante épocas, eras, que nos minam por dentro e explodem no
momento errado, na pessoa errada. Sei disto, como estudante aplicada.
E se doi, persistentemente, se teima em
vingar, se não abdica e se torna presente nos dias, eu sei também,
do muito que já o vivi, que o tempo mostra. Não é a fuga repetida
de algo ou de alguém que nos afasta seja do que for. Oh Deus, como o
sei! Podemos sequestrar o fim do mundo para nos guardar, sem aviso, e
ali nos escondermos meticulosamente, que quem nos quer encontrar,
encontra sempre. Então, por mais estranho e pequenino que possa
soar, sei-o, de há muitas fugas atrás, que o que é para nós a nós
chegará. A seu tempo.
Assim, muitas estradas sem Ítaca
depois, aprendi a espera. E por isso agarro a Vida todos os dias,
como beijo, como sopro, como universo, por mais que as noites se
insinuem. Amo a Vida sempre que amo gente. E amo gente. Às vezes,
muito poucas, nuns momentos de inspiração, de luz mais ampla, amo
mais estreitamente, mais perto, mais corpo e alma, mais eu. Amo essa
metade platónica, perdida, que corre os tempos de todos os universos
pela unidade, pela reconstrução.
E então, apaixono-me pela vida, ainda
uma vez mais. Como música, porque caminho com ela. É ela a maior
parte de mim, a que me regenera e me sabe. Porque só há Vida quando
há paixão, e a música nasce em paixão. Por cada ponto do cosmos,
por todos os Seres, pelas Gentes, pelo Amor. A paixão pelo Amor, que
é insuperável!
E por alguém, que me revive.
Que não me sabe, mas pressente.
Ana Vassalo
02-Jul-2013 – 09:49
(Song from me to me)
Train - Drops of Jupiter
Train - Drops of Jupiter
YouTube "bleachcraze101"
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