
DIÁRIO SEM COMPROMISSO
03-Abril-2011
LISBOA, COM ESPELHOS
"Deus ao Mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu."
in "Mensagem", Fernando Pessoa
Cá estou, acantonada no "café da rua", com um esboço de jantar à frente, tentando aventurar a escrita. A chamá-la para perto, com ensaios de fé, em deuses vários e agregados.
Não tenho como me libertar, é vício cansado de velho, mas irresignado - com devaneios de "fitness". Carrego-o desde a infância, quando o substantivo se renomeou de solitude. Mas vício com gosto e companhia, sempre rodeado de parceiros inspirados: a Gulbenkian, a praia da Torre, os Jardins Suspensos do Museu de Arte Antiga, o desaparecido Café Roma - por fim, derrotado pelo McDonald's - o CCB ao sol e ao frio e à chuva, para que o Tejo esteja ali à mão de ver. Recantos, refúgios, que só decido a caminho. (Hoje, como tantas vezes, também este Cafézinho amigo, pequeno e aconchegante, onde o cigarro é bem tratado e eu não menos que ele.)
É este, o meu, um certo tipo de vício, que se estende, ainda que só voe, por lugares tantos que desenho na mente, mesmo ao lado de outros mais, que conheço de uma vida. É a Lisboa de mistério, do Castelo, de S. Vicente de Fora em todos e cada um dos seus recantos, da Sé, de Santa Engrácia, do Carmo, e dos subterrâneos que ela, cidade de sempre tão minha, vai guardando por aí. E porque são alguns e tão generosamente únicos, quando dou por mim... já lá moram mais uns quantos, pobres desalojados de mapa.
Manuela Gonzaga largou-me um dia o vírus dos seus "Jardins Secretos", "lugarzinhos" tão (literalmente) incríveis, que me infectaram de feitiço para sempre. E são os dias mais pobres, aqueles que às vezes acontecem em desfile pelo vazio, os que me acompanham em descobertas sem fim, de grutas que nunca houve, pelo fim do chão da cidade que surpreendo por baixo do "mar", no limite da memória de brincar.
E subitamente, assim, sem aviso, dança-me no espírito um outro lugar de histórias. Em Château-de-Méung, na própria fortaleza, indescritivelmente bela de irreal, que nos recebe através da luz filtrada pela folhagem e projectada na imagem diáfana de um gigantesco e multicolor "bouquet", suspenso de uma velha "charrette" que descansa do tempo apoiada nos braços, habita, como é costume bonito de castelo, uma lenda de caminhos escondidos, que ligariam a pequena cidade (?) do Vale do Loire a Paris, lá por baixo do olhar. É difícil conceber a verdade na lenda, mas é bom. Como de bom, assim, pouco resta. Noto que recordo todos os momentos da minha presença encantada ali, tão jovem e tão cliente de quase todos os géneros de fé, escutando o relato entusiástico e acrescentado do guia turístico local, e de dar por mim a distâncias estelares, de tempo e de espaço mentais, por lá ainda, mas de asas por Lisboa, do lado-avesso do Chiado.
Seguindo o avô dos tempos, por sob o Grandela do meu contentamento. Grandela esse, onde, em tempos de riso fácil, exercia com arte os meus dotes de adolescente marginal. Por lá tantas vezes me diverti, com um amigo fiel de disparate-com-plano-e-concertação, arrasando com o equilíbrio emocional de funcionários zelosos e competentes, só por causa daquela mania sem termo de "galgar" subidas e descidas pelas escadas rolantes mas... ao contrário do sentido de movimento das ditas, sempre, sem apelo nem descanso. Recordo com nitidez de teleobjectiva as duas ou três vezes em que fomos compulsivamente "convidados" a sair. Voltávamos sempre. Os meus catorze anos não acolhiam, e menos validavam, o conhecimento intrínseco do verbo "não poder" e, desconfio, com elevado grau de convicção, que o mal me ficou para a vida.
Mas retomando o fio emaranhado, e contravenções à parte, era ali que me pensava em chegada ao plano oculto, ao final do mundo entendido, aonde acedia sabe-se lá como, por uma qualquer porta desenhada à pressa, achando-me, por fim, nos segredos mais velhos de uma Baixa subterrânea. Eu, caminhando adiante, desbravando o interior da Rua Nova do Almada, em progresso até à Praça do Comércio... E o Tejo, lá por baixo, em leves incursões por terras hoje proibidas, ligeiro e suave como quem relaxa, esticando as pernas até ao Rossio - o prazo antigo da sua margem num tempo certo.
Eu, por ali, temerária, ao desafio da conquista de respostas às perguntas de uma vida, entrando, afundando-me num mar abraçado que há muito esperava por mim. Mar que é rio, pelas águas da deriva. E é por ele que me entendo. Onde o meu nome sou eu.
Tejo é verso, que dá de ombros ao compasso - não sabe de rima ou tempos. É cruzada ao infinito, o logotipo de partir, sem hora que se conheça ou vestígio de remorso. E é retalhos de mundo a pedir reunião. É a casa, que é razão de mais viagem. Tejo é Lisboa sem freio, selva por dentro, vestida de pano de alma.
E Lisboa... Lisboa é voltar antigo, talvez saudade de marinhar. Vou de barco, e estou. Sou o barco, quando acordo. Velejar é o destino. Sem fado. O destino de quem se ama sempre mais do lado de onde não está. E não cansa, para estar. E talvez, pelo caminho, quem sabe, se recolha num lugar de Ser... Porque Lisboa É. E eu vivo por lá, no avesso dela. Na noite acordada, que escreve por mim tudo o que não sei dizer.
Em Belém, a luz é segredo. No Terreiro do Paço é natal, onde ensaio o primeiro sopro. Na Graça, é chorar guitarras, xaile negro, olhar do fim. Santa Luzia é Cerca, Miradouro sem distância, e Pedro Barroso às vezes. Em Alfama é luz de aromas, e poemas-laís, com aventura de rosas. No Castelo, é Crónica do Reino, em Gótico Solene com décor de iluminura. No Campo de Santa Clara, a luz é Feira, pregão de contos de um País, carregados pelo tempo. E no Rossio, onde espreita Pedro o IV, Lisboa foi de Abril a festa. Já no Chiado, é de Pessoa, é luz de espelho, e vai com os abismos onde se entornou o céu.
Na morte da criação, é Lisboa o traço Vida, com Sol de Levante ao fundo, pelo Tejo cheio de pressa.
Ana Vassalo
03-04-2010 - 23:08
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