António Zambujo, "Trago Alentejo na Voz"
(Já eu, trago Alentejo em mim...)
Crato
E então a noite chegava, no desencontro das estrelas, e eu sabia que ali morava uma parede de céu forrada de preto e prata, que sempre me consolara.
Ficava ali, nas minhas horas de esquecer, a ensaiar a fuga real que vivia nos meus sonhos. E os olhos fugiam a rasar a planície escondida de escuro, onde as estrelas ajudavam. Ajustava os binóculos, a desenhar a Lua perfeita, gigante e de branco, como a via na vontade. E em tamanha ambição, seguia pelo contraste para depois a desfocar, tornada em plano irreal, onde me apetecia entrar.
Naquela terra, sonhar era uma possibilidade presente, potencial nosso em formação pelo interior do silêncio.
Amanhecia. Rumar ao mosteiro era um presente matinal que me concedia. Instalava-me no Bar, vazio e imponente, catedral da paz no espírito mais desencontrado. Em fundo, Madredeus soavam, correndo arcadas, vitrais, rosáceas, a lembrar um encontro com os anjos, a pedido, de Segunda a Domingo.
Era feliz, entre a memória dos ritos, a altivez das colunas, e a música, a agarrar o passado num dia fora de tempo.
Vinha de lá, daquelas ruas caiadas de branco e estreiteza, canteiros suspensos e janelas pequenas, onde o bom gosto soletra a simplicidade, pórticos restaurados na pedra picada por artesãos aprendizes, de outros, ancestrais artistas da obrigação onde o talento vencia!
Vinha dali, de um lugar onde o sino repicava as cinco da tarde, do alto do campanário de uma igreja sem idade, entre o cemitério calado e a planície atrevida, registando proximidades. A lembrar como é real a união das almas no universo da ideia, seja na vida ou na morte.
Sei que o meu tempo ali se entendia. E estendia, para lá do relógio ensinado, e ganhava corpo e voava pela terra dos sentidos, elevando pelos céus uma outra vida que a memória genética parece já ter esquecido.
Apercebia, enfim, a imaginação como um poderoso alucinogéneo, capaz de criar horizontes fora de contexto logo que nos propomos lançar o olhar, despojados de pré-noções sobre o que deve ou não estar certo no seu devido lugar.
Não existe um lugar para as coisas da memória. Temos de ser nós arquitectos, de uma cidade de recantos por achar, inventores de mais céu no fim do mar, para que as asas batam luares e a vida seja, por fim, a viagem a cumprir do olhar insatisfeito.
Lá, o poente é uma tela impressionista, em que o azul perdeu a sua importância de céu.
Do alto de qualquer torre, escadaria de jardim, ou miradouro natural desavisado, a cor brinca com o olhar em tons difusos e dispersos, como crianças brincando um sonho que nunca havíamos sonhado, mas gravam no céu poesia que desprevenidamente carregávamos dentro de nós.
Porque o silêncio inspira as almas achadas no desencontro do ruído inexpressivo e é nele, silêncio maior, que a natureza se aplica a revelar o que de nós é essência. Somente no centro do nada que o desconhecido representa pode despontar aquele todo que somos nós antes de nos dispersarmos pelas avenidas do progresso.
Lá, onde o tempo não se mede, acorda um dia de horas plenas, que habitam dentro de nós.
Ana Vassalo
22-Abril-2010 – 22:35H
Posted: 2-Maio-2010
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