Sempre roubaste coisas
dos dias simples para me dar.
Continuas a fazê-lo com
o mesmo gosto e inspiração, o mesmo sorriso de vida.
Eram as letras do jornal,
para eu juntar, tão pequenina ainda. Os botões, subtraídos das
costuras da mãe, para eu contar. Aprender, coisa importante, dizias.
Mais tarde, ainda antes
da Guiné, de mão dada pela Liberdade que corre uma avenida, eram os
néons dos anúncios. Aquele de A Confidente que, já no Rossio,
corria redundante em piscadelas cíclicas, ou o outro, tão
misterioso para mim, o homem de capa do Porto Sandeman, lá bem
alto, mesmo à esquina de chegar. Tinha de ler tudo, de passeio, com
a tua ajuda e os anúncios como livros.
Já em África, eram as
letras maiores da bomba de gasolina, das lojas e restaurantes, que eu
agora repetia com a familiaridade dos amigos. E os números sempre ao
lado, presentes também, com as sucessivas multiplicações por 2,
até ao infinito que a minha ignorância permitia – exercício que
continuo a usar quando o tédio de certas reuniões ameaça
vencer-me.
Foi lá, nessa terra do
longe aparentado com os sonhos, que fui à escola pela primeira vez
e, sabes, tenho largas dúvidas de que algum menino tenha sido mais
feliz do que eu nesse dia. Porque hoje, quando agarro o papel, os
lápis, a borracha, é dos cheiros desse dia fantástico que me
lembro. E mal sabia eu que tantas, tantas coisas diferentes,
divertidas e inesquecíveis, me esperavam naquela escola em pleno
mato, nos intervalos das letras e dos números.
Depois, em paralelo, e
quase desde as fraldas, o desporto!, para a “higiene mental”.
Eras demais! Ginástica diária, 1, 2, esquerdo, direito, acima,
abaixo, por entre gargalhadas, os jogos de bola na rua ou, já por
cá, eu lá pelos meus doze anos, o badmington no jardim, à noite, a
coisa bem a sério e a preceito, com o requinte de uma longa
cordinha, que improvisaste, com pregos a marcar os cantos para
delimitação de campo, as jogadas a doer, a puxar, com garra e
direito a visitas alucinadas ao chão, por entre os aplausos da assistência
que, entretanto, se tornara aficcionada. O incentivo, vida afora, o
gosto continuado, os saltos na cama elástica, que eu adorava, o
andebol, o futebol... e o basket!, com os treinos no Técnico e os
jogos no Estádio Universitário, seis anos ininterruptos, defendendo
as cores dos dois Liceus, a que a minha, alegadamente excelente,
meia-distância somava uns pontinhos valentes.
Uma rotina boa que tem
acompanhado as gerações. Aos 3 anos, já a minha menina estava,
também ela, a caminho da Ginástica, com o seu saquinho da pantera
cor de rosa ao ombro, maillot e sapatilhas lá dentro, tudo a
preceito, lembras-te?, que eu escolhera com entusiasmo e carinho na
Sempre em Festa! E sabes, pai, os pequenos pestinhas também já
trilham o mesmo caminho, sim, esse de letras e saltos.
Correm para a salinha
infantil sempre que vamos à Fnac, escolhem os livrinhos, sentam-se e
pedem-nos para lhos lermos. E a estante, nos seus quartinhos, está
bem recheada: livro é amigo dos bons, uma historinha para dormir,
sempre. O João, então mais pequenino, pedia sempre a mesma, a do
Capuchinho!, pai, que eu detesto - e nem as explicações eruditas
das suas origens medievais me aumentaram o coração - e que na
maioria das vezes conseguia substituir com mestria mas, dada a
fixação, de vez em quando lá me resolvia a perder e aceitava a
tarefa. E enfim, para que saibas, ainda jogo futebol com o João –
na rua, sim – e bem! O rapaz é um craque e eu só posso
incentivar, não é? Diz que sim. E como é bom de letras e número
também, a coisa dá-se, vais ver.
Resta-me confessar-te que
há esse momento único que me visita, sempre que penso em infância.
Aquele repetido, também em África, em que te ouvia aos gritos lá
do fundo da varanda sem fim, «ó Nita, Nita, anda cá depressa ao
pai, corre, filha, anda cá!», e eu, já diplomada nas boas
notícias, corria mesmo, desalmada ao teu encontro, para receber das
tuas mãos ensopadas o gelado, aquele maravilhoso gelado feito de
muitas frutas e amor, agora já quase todo derretido após o longo
caminho da Defesa até casa, que vencias a correr.
Tempos, muitos tempos na
nossa vida, de diferente cadência, de desfechos amigos, ou de rumos
imprevisíveis.
Como aquele, pai, que
dificilmente percebeste, aquele tempo de mudança súbita e radical nos
últimos anos do novo liceu, e que eu nunca expliquei, também. Mas
sabes, os meus 14 anos gostavam dos 18 e 19 de alguns dos meus novos
colegas, que tinham coisas interessantes a dizer; e de repente, a
escola tornou-se insuportável na directa proporção em que me
apercebia que essas coisas cativantes não faziam parte do
curriculum, mas sim uma cultura a metro - a quilómetro, melhor
dizendo – um saber por encomenda, que retira qualquer gosto à
aventura do encontro.
Era com apreensão que,
nos últimos tempos, me vias passar de ano a rasar. Não percebias,
nem eu. Porque, acima de tudo, o número de faltas era constrangedor
e ameaçava tudo fazer ruir mas as visitas ao notário para validar
os pedidos de relevação de faltas acabavam por resolver tudo e
sempre com a tua ajuda. Safavam-me as intermitências, nos seus
pontos altos, aqueles 19 e 20, depois dos muitos 5 e 7, que criavam
alguma compreensão nos professores, mas estudar, pai, é diferente
de ler e eu nunca gostei, nada, nem mesmo quando, por iniciativa
própria, voltei à faculdade. Aprender tem de ser livre, a obrigação
cria um tédio imenso, que me é difícil descrever.
Será que me percebes,
paizinho? Sempre conseguiste, não é? Tiveste sempre essa incrível
vontade de tudo tentar entender, ainda que te zangasses às vezes e a
sério, mas havia em ti uma imensa capacidade para acolher o novo, o
diferente, o que faz com que, ainda hoje, os meus amigos de então te
recordem com gosto e pormenor: o pai diferente, compreensivo, um
“amigo fixe” para desabafar os males de juventude, essa que se
sentia sequestrada numa sociedade castrante de sonhos e liberdades. E
tu, tu sempre estiveste lá, para os ouvir, para conversar, sem
julgamento.
(Pai, mana Zita, alguns dos sobrinhitos)
Hoje, são as
quarta-feiras, às vezes quintas, que dedicas aos nossos almoços
semanais, antes jantares, de tertúlia e novidades em dia, de risos e animados
debates políticos, daquelas histórias de vida e viagens que surgem
sempre a propósito de qualquer coisa, porque são inúmeras e
imensas. Se soubesses, meu pai, o bem que me fazem esses momentos,
dos escassos que a liberdade ainda me reserva, os mais queridos
momentos, porque são de ti para mim, incondicionalmente, que tentas
por todos os meios que conheces – e são muitos - fazê-los
brilhar.
(Pai e sobrinhito Hugo)
O teu espírito menino
ainda me ensina tudo. Que vale a pena estar vivo quando se faz da
vida um instante pleno.
É bom saber que, nos
teus 90 anos, acabaste de te inscrever num ginásio lá para os teus
lados, uma vez que as duas sessões de ténis por semana já não
chegam e há umas dorzitas incómodas que te andam a aborrecer. Como
também é bom perceber, de caminho, que podemos queixar-nos a rir.
Dos males que insistem em acompanhar-nos em visitas periódicas de “olá, cá estou eu!”, reduzindo-os, sem dó nem hesitação,
à sua insignificância própria, que é a dos intrusos.
É bom, paizinho,
saber-te sempre presente, acima de qualquer dúvida, nos tantos,
imensos erros, nos quantos sucessos, das muitas vidas que tem sido a
minha vida.
Há-de ser sempre, eternamente reconfortante, onde quer que tenhas morada.
Obrigada, por me
ensinares a alegria.
E antes de tudo, pelo mar, pelos navios, por esse mundo sem fim.
"Navegar é preciso".
Gosto tanto de ti, Pai.
Ana Vassalo
Mar 19, 2016