Cajú
amarelo
> Escolinha
minha, no mato, em Teixeira Pinto - hoje Canchungo. Vagas na cidade, em Janeiro, nada. Lá fui. Era a única pele branca, por ali. De longe, a minha melhor escola: a feliz.
> Ao
fundo da nossa rua, a minha segunda casa – a esplanada. Era, então,
o “Café Portugal”. Aqui conheci Ruy Mingas, pela mão de meu pai. E no terraço, conheci "Amélia, no meio do rio, tão pequenina, cheia de frio", pela voz de Luiz Goes, presente em serão de tertúlia.
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Zezé
é um nome encostado à eternidade, no pedacinho de mundo em memória
que me pertence.
É
o nome de meu pai - José. Do menino que tinha um amigo, o seu pé de
laranja lima - presente de aniversário aos 18 anos, com dedicatória
amiga [“tem tudo a ver consigo”], que me marcou para a vida. Nome
do meu primeiro namorado. E do meu amigo de infância, mesmo do outro
lado da parede, na vivenda geminada: Zezé.
Tal
como o menino triste mas incansável de esperança e vida, era no
quintal que guardávamos os maiores amigos: árvores, telhados;
aquela tina com um banquinho dentro e uma tábua a fingir-se volante
que, à vez, nos levava em corridas motorizadas invencíveis; o
cantinho da laranjeira, que se erguia mesmo ao lado da escada para o
quintal, com quem tínhamos inventado um refúgio, os ramos a
ajudarem e a casa-no-telhado a nascer; e tínhamos o cajueiro.
O
cajueiro era grande, enorme, alturas de céu, sem muros de acesso ou
telhados. Como um deus, inacessível - a nós, tão pequeninos.
Pedíamos ao Joaquim, especialista trepador, que nos arranjasse uns
quantos frutos proibidos – sim. A nódoa de cajú era para a vida,
coisa pouco interessante aos olhos de minha mãe ou de vovó Firmina,
já para não falar na dor de barriga, aguda e prolongada, que não
falhava uma oportunidade.
Estava
lá, ao fundo, no canto esquerdo. Virado para a Escola Berta Craveiro
Lopes, mesmo em frente, na nossa rua-como-avenida com estórias de
chuva e danças. Completamente isolado dos seus pares, o cajueiro
erguia-se, frondoso e altivo, para o Sol, e não cedia um
milímetro. Era preciso chegar mesmo lá acima, coisa que, de resto, não era
impedimento de monta para o Joaquim.
Joaquim
e Zezé eram meus irmãos. Irmãos de sangue, com pacto de união.
Mas enquanto Zezé era companheiro de brincadeiras insanas, Joaquim
era o mano mais velho, que passava a vida lá em casa, ofegante e
ansioso, apresentando-se de frase-pretexto - Siôa, Joaquim veio
ajudar – que, traduzida, resultaria em algo mais claro, qualquer
coisa como “estou a precisar de umas massas”.
Conheci-o
assim, lá em casa, quando eu tinha 5 anos e ele 15. Concorríamos
ferozmente por umas colheres clandestinas de açúcar para depois nos
acusarmos sem trégua e mutuamente, por entre gritos e encontrões,
quando descobertos. Éramos ávidos, logo pouco espertos: íamos
tirando, roubando, até que o açucareiro desfalcado nos denunciasse.
Ano após ano.
Foi
ele quem descobriu a cobrinha cor de rosa de barriga branca, bebé
recém-nascido, no caixote dos meus brinquedos. Que não, era uma
minhoca, dizia a mãe. Qual quê, nada disso, cobra mesmo, tem
barriga branca, refilava o Joaquim. E era nele que eu acreditava,
porque ele sabia tudo. Montou-se na bicicleta e passou por cima da
cobrinha. Eu fiquei horrorizada mas ele calou-me, carregado de
justiça: Nita, a mãe tem de ver que é cobra. E claramente, a
cobrinha, dimensões de dedo anelar, não morreu, e nem sequer se
partiu.
Começou
então o dia do juízo, ali, vizinhança mobilizada num raio
alargado, o pai tirado da Defesa à força, que é que se passa,
perguntava eu, olhos arregalados, não é nada não te preocupes vai
para o quarto e leva o cão. Era - percebi muito tempo depois, quando
o assunto tornou a visitar-me ideias perguntadoras - a caça à
cobra-mãe. Que sim porque sim, tinha de estar lá em casa. Nunca
soube se estava ou não, ninguém me disse. Cobra era assunto de
pavor, por ali. As espécies residentes - surucucu e cobra-verde na
liderança - eram todas letais. As conversas ao serão - fuzileiros e
tropas aos molhos lá por casa, mais os casais, uns do continente,
outros locais, tudo de filhos agarrados e respectiva chinfrineira
associada, uma imensa cegada de confusão e alegria - acabavam
invariavelmente em contos do maravilhoso, com cobra e crocodilo à
lapela.
Por
isso, o pai dedicou-se a construir um jardim e uma hortinha, no
quintal enorme. Só do nosso lado, porque o de Zezé era árido, ali
não crescia nada. Apenas, como memória da natureza, uma árvore
pequena e seca, mesmo ao centro. O que era óptimo para nós, os mais
pequenos, desenfreados em correria, do raiar ao poente do sol. O lado
de Zezé era muito mais largo e eles já lá estavam quando o pai
chegou e alugou a casa. Do nosso lado, moravam as árvores
companheiras de desatino: mangueiras, papaeira, coqueiro, laranjeira
e limoeiro ladeando as escadinhas, mangueira da índia, palmeiras e
muitas outras selvagens, e o cajueiro.
Só
faltavam as goiabas, manjar dos olimpos, que roubávamos do quintal
de um amigo dos meus pais e me valia sempre castigo a condizer. Mas
goiabada é coisa do outro mundo, e eu enchia bolso e chapéu para
pedir à mãe que as transformasse em doce. Que agora, durante uns
largos anos, eu comprava, de saudade, ali para a João XXI.
Porque
é que nasceram, então, jardim e hortinha? Muito menos como hobby,
que o pai tinha muito pouco tempo livre e andava muito por fora, mas
como prevenção. É que o capim crescia à velocidade da luz e
cobria um adulto, completamente. Escusado será dizer que era o
esconderijo preferido no jogo das escondidas, por mais que proibido
coercivamente, explicando-nos que era também o refúgio preferido
de... cobras. E quem queria saber de tal coisa? Nunca tínhamos
encontrado nenhuma, ora, coisa de adultos delirantes e medrosos, só
podia, estava decidido: capim era amigo também.
Gafanhotos,
enormes, coloridos ou verdes conforme se camuflavam, minhocas,
lagartixas, aranhas, completavam o quadro de amigos restantes. Não
lhes fazíamos mal, nunca fizémos. Apanhávamo-los para brincar,
colocando-os artística e sorrateiramente em cima da cabeça do
parceiro. Era coisa antiga, de resto – que eu era mázinha.
Tinha-se
revelado muito cedo, esta empatia com os bichos. O que talvez
explique em muito o emaranhado pedaço de mato que me compõe e que
agora não vem ao caso.
Na
viagem de barco, de 11 dias, a bordo do velhito mas interessante e
operacional Manuel Alfredo, tínhamos parado em Cabo Verde, não
recordo em que ilha, por muito pouco tempo. Sentadas no jardim à
beira-mar, mãe, mana, amigas, conversavam descontraidamente,
ladeadas por uns quantos colegas do meu pai, que tinham a missão de
nos proteger durante a viagem – a pedido e por estrita razão de
amizade.
A
mana, adolescente, era ruivíssima, sardenta e bonita, e os
pretendentes sucediam-se, ainda que sem grande sucesso, ao que
parece, que os tempos eram outros e os avisos prévios paternos
tinham sido claros. Quem ganhava era eu, por correspondência, já
que me enchiam de atenções. Independentemente disso, acresce que eu
era, alegadamente, um completo terror - porque fugitiva reincidente -
e eles andavam constantemente no meu encalço, verificando se ainda
mexia, desde o dia em que me apanharam pendurada, quer dizer,
escarranchada num larguíssimo cabo, já meio fora do navio. Uma cena
de filme, que recordo como se fosse hoje, tudo muito assustado e eu
sem perceber porquê, não tenhas medo, espera por mim que eu chego
aí, sim?, para quê, perguntava eu, estou bem aqui, etc, um drama
maior que nunca consegui validassem como perfeitamente dispensável.
A
mãe, 11 dias no camarote, de quarentena, como quem diz enjoada de
morte: mal punha o pé cá fora regressava quase em braços - culpa
de vacinas, e mais os balanços, rematados a comidas com cremes
estranhos. Restava a mana Zita que, por mais que fizesse, nunca sabia
onde raio parava eu. Podia estar na cozinha, onde os cozinheiros me
ensinaram a decorar bolos enormes e lindíssimos; ou no bar, durante
o dia, a ouvir música “estrangeira” - que adorava; algures, numa
esplanada qualquer, a beber um Canada Dry oferecido, polarmente
gelado, como sempre gostei e gosto; ou muito bem instalada no colo
de um dos amigos, à noite, a ver cinema por entre sonhos e vigília
– quase todo de guerra; por fim, o mais provável, a “descobrir
terreno” para o mar, que me fascinava com uma intensidade que nunca
saberei explicar.
Então,
lá por paragens de Cabo Verde, como dizia, um desses “salvadores”
juntou-se a mim numa das minhas habituais sádicas iniciativas. E
muito convenientemente, num desses momentos únicos e memoráveis em
que a minha mãe tinha posto o pézinho cá fora. É que ele tinha um
lagarto... verde, de borracha, em pedacinhos unidos como plasticina,
tão real que eu própria confundi com o original, em primeira
abordagem. Ou seja, tentação incontornável, sim: “lampadinha”
acesa, voilà!, pedi-lho emprestado.
Mas
ele... Ele quis saber porquê, ou melhor, para quê. Tive de lhe
explicar que a mãe tinha terror daquilo e tínhamos de lhe tirar o
medo. Ele deve ter achado razoável, porque emprestou. Mas também se
ria.. Então, aproximámo-nos por detrás do banco que as abrigava e,
com uma perícia irrepreensível, espetei-lhe com o lagarto ao ombro,
assim muito, muito devagarinho. Tão devagar que, infelizmente, ela
não deu por nada. Pelo que lá tive de começar aos gritos, ó mãe,
mãezinha, tem um lagarto aí, no ombro, veja lá, veja lá! Fim do
mundo. Arrependi-me. Ia-lhe dando um treco, coisa má – e isto eu
não previra, que afinal, ainda que retorcidos, eram só 5 anos de
saber, na minha desatinada vida. Pouco tempo depois, ria-se, a mãe,
quando lhe recordavam o episódio. Olhava-me de sorriso reprovador
artilhado, ramatava com o habitual és mesmo uma peste acabada e o
assunto arquivava-se até novas ordens.
Enfim,
genes.
Não
falávamos com o cajueiro, como o outro Zezé, mas com Joaquim,
enquanto ele subia. O cajueiro era a nossa árvore proibida - a preferida, portanto. Muita
gente aprecia a castanha de cajú, que será, provavelmente, o melhor dos aperitivos e eu,
como não podia deixar de ser, rejubilo por uma latinha daquelas bem
grandes, carregadinha de castanha, que desaparece em menos de um
sussurro: “caju o quê?” Mas poucos conhecem o fruto, que a
mãe dizia saber a aguarrás – não que ela tivesse provado a dita,
mas era bastante convincente. Tem sumo a rodos como lagos, e nós
matávamos com ele a sede para não termos de entrar em casa - ou já
não nos deixariam sair, tal o mau aspecto, terra e suor agregados ao
cansaço, que exibíamos sempre que a sede nos levava a melhor.
Era
alto, muito alto, e olhá-lo cá de baixo, magicando que era, com o
coqueiro (também sem acessos), dos poucos redutos inconquistáveis
daquele quintal, enchia-nos de uma certa reverência para com ele: o
nosso cajueiro. E Joaquim era o herói. Escondido, porque a
mãe não o queria lá em cima. Escondido, como tudo o que fazíamos:
os perigos mil que não víamos, a tentação de desobedecer, sempre,
só para ser feliz.
E
acontecia. Éramos felizes.
Joaquim
não pôde vir connosco. A saída foi à pressa e não houve tempo
para tratar da burocracia. Chorámos baba e ranho, agarrados um ao
outro, 3 anos de peripécias vividas entre riso, estalo e abraços.
Adorávamo-nos. Separar-nos, foi das coisas mais cruéis que vivi,
aos 8 anos. Mas nada se podia fazer.
Lembro-os
a todos, mas Joaquim e Zezé - este da minha idade, que recordei por
aí numa estória de “portões” - moram comigo num lugar muito
especial do amor, que é o das crianças. E às vezes penso... será que me lembram como eu a
eles? Nem sei se ainda vivem, sequer...
A
não ser no meu quintal, gargalhada solta, almas em voo, sentados na
sombra do cajueiro, donde nunca sairão.
Lugares
felizes não morrem.
Ana
Vassalo
Apr
16, 2015
Nota:
“A copa do cajueiro-comum pode atingir até 20 m de altura, sendo,
por isso, também chamado de gigante. No entanto, é mais comum os
cajueiros entre 8 m e 15 m de altura, com diâmetro da copa
(envergadura) proporcional ou superior à altura.”